Estes dias que passam 96

Algumas reflexões
sobre os tempos que
nos são dados viver
O caso da “educação”.
O poder político entendeu, desde há muito, apontar o dedo às “corporações” (os médicos, os juristas, os professores) ou alargando o leque à “função pública”.
Começando por esta última, convém lembrar aos esquecidos que a “função pública” começou o seu “peregrinatio ad loca infecta” no tempo do Estado Novo. Começou aí a “desqualificação” de um corpo que por deter especiais poderes deveres era o inimigo ideal a abater. E isto tanto mais fácil era quando havia a percepção que o corpo de funcionários podia facilmente ser confundido com o poder. O que não era, não é verdade.
Há na velha e demagógica ideia da intrínseca maldade da função pública uma convicção muito portuguesa, filha de um atraso secular que sempre viu o Estado como o travesseiro protector de interesses difusos, as mais das vezes privados.
Basta ver a gritaria que ocorre normalmente quando, por exemplo a China quer pôr no mercado um milhão de camisas. Ai Jesus, depressa uma pauta aduaneira. Ou a gritaria histérica que por aí se ouviu quanto à “invasão espanhola” na economia nacional. E por aí fora.
Quando não há uma ideia clara, política e estratégica do que é governar, surge o papão das “reformas”. Ora reformas, desculparão os leitores, tem-se repetido à dúzia na educação e noutros sectores. As “reformas” acumulam-se, acavalam-se, nem deixam respirar as anteriores. Quem estas linhas escreve viu, só nos últimos dez anos, quatro reformulações tremendas no Ministério da Segurança Social. Os resultados, se resultados há, são tão mesquinhos tão pequenos tão pobres que apenas nos vem á ideia pedir um cabo de esquadra na casa dos reformadores para os trazer a um tribunal que avalie dos gigantescos recursos espatifados. E os julgue, uma vez por todas. Esta gente é perigosa, é irresponsável e gasta alegremente o dinheiro que apenas está à sua guarda.
No que diz respeito às famosas “corporações” acima citadas, juristas, médicos, professores estão no pelourinho (ou pretende-se que eles estejam, com pouco êxito: os professores são uma das classes mais estimadas pela generalidade dos portugueses que parecem não sufragar as diatribes da equipa ministerial e do seu egrégio pastor). Os médicos são, queira-se ou não, responsáveis por alguns êxitos assinaláveis na saúde pública e há por aí alguns estabelecimentos hospitalares de excelência. E no que toca à famosa crise da justiça, conviria verificar onde é que se verifica o entupimento dos tribunais (e não é difícil) porque resolvido isso, boa parte dos problemas de que se fala têm origens exteriores às profissões jurídicas.
Posto isto vejamos o que se passa na educação. Eu não conheço a ministra, não a julgo profissionalmente mas apenas politicamente. E quando oiço gabar-lhe a “coragem” lembro-me sempre da confusão com a “rigidez”. A rigidez não é coragem. Provavelmente a pessoa corajosa é a pessoa que tem dúvidas, que tem medo, que avança e recua, que é capaz de explicar continuamente os objectivos e, já agora os métodos. Se isto é o retrato da responsável do ministério ou não é com os leitores.
Pormenorizando um pouco mais alguns dos temas em conflito, comecemos por essa estranhíssima coisa que é a “grelha de avaliação” que, num programa de televisão visto de relance, foi qualificada de diagrama do metro de Londres. Do que se conhece dos quesitos muito haveria a dizer, incluindo aquele inenarrável que pretendia saber se o professor verbaliza criticas ao sistema com o fim sinistro de o sabotar. Convenhamos que nem o Dr Salazar no seu célebre compromisso a prestar por candidatos à função pública foi tão longe. Eu bem sei que o dr Salazar é o mais ilustre português aclamado num concurso que diz muito do que o país é mas mesmo assim...
A segunda coisa de que oiço obsessivamente falar é do fenómeno da descida do insucesso escolar. A que corresponde esse milagre diariamente negado pelo que vemos, lemos e ouvimos? Pois à descida dos padrões de avaliação. Ai do professor que chumbe um menino. Tem de se explicar tanto, tantas vezes, é tão pressionado, sofre o acosso dos pais (e algum bofetão) dos alunos ( a média já vai numa agressão diária) e vê a carreira em sérios riscos. Resultado, como um homem não é de pau, e um professor muito menos, a solução redentora, fácil e luminosa é fácil. O aluno tem sucesso. E o insucesso sofre o devido castigo: tem insucesso. As estatísticas fazem-se assim.
A terceira questão que me arrepia é a presunção dos pais. Os pais entregam á escola e aos que lá andam o destino dos filhos. A ideia é mais ou menos esta: Enquanto os pais trabalham os filhos devem estar num sítio protegido (boa graça!) cerca de dez horas dia onde lhes ensinaram o que já ninguém tem paciência de ensinar em casa, desde as boas maneiras à responsabilidade. E no fim os pais querem que o menino passe, sabendo ou não, que os estudos são caríssimos.
Por isso caiu como mel a ideia das “aulas de substituição”. Faltou o professor de matemática? Não faz mal está livre uma professora de artes visuais para dar uma aula de substituição. De artes visuais? Qual quê! De várias coisas eminentemente úteis como o jogo das adivinhas. E essa aula é paga ao professor? Não diz o ministério com medo da falência económica (como se esta fosse mais perigosa do que a pedagógica). Sim diz o tribunal. Não repõe o ministério: a sentença ainda não transitou em julgado. (sic.) Ou seja o ministério está disposto a tudo para não pagar. Eventualmente até recorrerá da sentença, direito que só lhe assiste, se ele tiver sólidas razões para tal, não por mera litigância. Conviria aqui começar a aplicar uma outra reforma. O litigante derrotado pagará uma multa, forte se possível, por abuso da justiça e do direito. O litigante, não o Estado que serve a esta gentinha para fazer o que lhes dá na veneta irresponsavelmente. Espero que os sequazes de menos Estado, melhor Estado me apoiem ao menos desta vez. Ministro que despilfarra os dinheiros públicos paga do seu bolso! Que tal?
Outra questão, que já por aqui vi citada prende-se com as “faltas dos professores”. Também eu condeno sem apelo nem agravo a falta viciosa. Só não caio na tentação de a pretexto desta propor soluções inconformes e desproporcionadas. Agora, uma falta por doença tem tais dificuldades em ser atestada que não vai tardar nada em vermos os centros de saúde atascados de doentes (ou pretensos doentes) que acabarão por obter o mesmíssimo atestado com sacrifício dos realmente doentes e a mesma consabida impudência dos sãos. Se nos lembrarmos que os centros de saúde ainda vão estar mais cheios (com um défice crescente de médicos de família: há anos que peço um em vão...) imagine-se como este caos criativo vai evoluir.
Eu sempre pensei que um ministério interessado em promover o saneamento das situações anómalas na educação começaria por resolver o problema das nomeações de professores, reorganizaria o quadro de efectivos, fecharia, se fosse caso disso, por um ou por dez anos o acesso à carreira docente e acabava com o sistema a todos os títulos infame, injusto, e vergonhoso do preenchimento de vagas. Durante anos acompanhei a vida de alguns amigos em princípio de carreira. Devo dizer que alguns deles na ânsia de se efectivarem andaram anos com a mala às costas gastando em viagens, alimentação e alojamento praticamente todo o ordenado. Dá para entender?
A minha experiência de vida cruzou vida em Portugal e lá fora, profissão privada e rendosa e função pública (cada uma a seu tempo, entenda-se) paga muito mais modestamente. Mas escolhida porque (era um engano mas na altura não o sabia) pensei que tinha um dever a cumprir com o meu país e a minha gente. Nesta última fase usei da minha anterior experiência para gerir o que me foi dado gerir. Nunca me desculpei com falta de dinheiro (que era aliás um pressuposto naqueles anos difíceis e no sector da cultura) e sempre disse o que pensava aos meus superiores hierárquicos. Nem sempre foi fácil mas ganhei o respeito de pares, de subordinados, de utentes e até de quem mandava. Também é verdade que, apesar de tudo, a politização da função pública ainda não atingira os extremos a que agora chegou. Até se podia ser de um partido diferente do chefe, vejam lá. E isso não influía, ou influía pouco, na promoção ou nos convites para cargos de chefia. Outros tempos. Basta compara-los com os que estamos a viver exactamente nos ministérios da educação e da saúde, ou já se esqueceram?