Estes dias que passam 65
A Câmara, o Rivoli e os espaços culturais do Porto
Interessa-me, sim, a discussão sobre o destino do Rivoli. Gazolina e Primo de Amarante dizem, e bem –muito bem, mesmo – de sua justiça. Dado que sempre me interessou o tema aqui venho à estacada. E reproduzo o que escrevi em comentário que um massacrante browser não me permitiu publicar enquanto tal:
“Pessoalmente não faria parte do numeroso grupo que se manifestou em silêncio e com um R (reprovação?) contra o uso do Rivoli. Também não faria parte dos que entraram. Entendo que neste momento, a mim, antigo responsável da Delegação Regional de Cultura do Norte, não ficaria bem comparecer e com isso, dar um sinal de concordância com a política cultural (???!!!) do senhor Rui Rio.
Já aqui escrevi sobre os recentes acontecimentos no Rivoli e já aqui condenei por inútil e desmobilizadora, a ocupação do Rivoli por meia dúzia de criaturas. O espectáculo deprimente dessa ocupação foi salvo pelo mesmo senhor Rio que impaciente mandou a polícia evacuar os ocupantes quando já era patente que nem eles tinham apoios cá fora, nem a população se apercebera minimamente da justeza dessa acção “rivolucionária”. Rio conseguiu fazer deles o que eles mesmos não conseguiriam: uma espécie de mártires.
A questão Rivoli é a seguinte: deve ou não uma Câmara gerir um espaço dedicado às artes de palco ou não? Se sim, em que termos e com que limites?
Pessoalmente, com a experiência adquirida de anos e anos de vacas magras, recordo a gestão do Auditório Nacional Carlos Alberto a cuja administração estive sempre obrigatoriamente ligado. Para quem não se recorde (ou não queira recordar-se...) o ANCA foi durante anos o único espaço cultural aberto de actividades de palco (teatro, bailado, música, marionetas) e de cinema. Ali se realizaram as sessões do cineclube, os fantasporto, as dezenas de ciclos especiais de cinema. Ali passaram em v/o Murnau, Griffith ou Ford. O que de melhor veio a Portugal no capítulo dança passou lá. Todos os grandes cantautores portugueses do Zeca ao Sérgio cantaram ali. O Orfeão Portuense, a Juventude musical. O círculo de Cultura Musical e o círculo Portuense de Ópera tiveram ali, naquela sal casas cheias. O mesmo se diga do jazz, e de algum teatro estrangeiro. E com orçamentos limitados. Limitadíssimos. Angustiosamente limitados. Sempre se soube dosear o espectáculo de massas e o pequeno de vanguarda. Porque do primeiro há excelentes coisas e nem sempre o segundo é oiro de lei.
Bastaria copiar este modelo de gestão que teve os favores do público, os louvores da critica e a desatenta bênção dos poderes constituídos que louvavam mas não desapertavam os cordões à bolsa. As contas foram publicadas, o ratio de espectadores idem. E era algo com que hoje nenhuma sala do Porto sonha.
Se a Câmara Municipal do Porto não está para culturices nem despesas que venda a casa. Ou transforme-a num local de “eventos” que é o que parece vão fazer aquela coisa em forma de assim que se chama edifício transparente. Parece que a vão dar de mão beijada a alguém que por pouco dinheiro tem esperanças de ganhar muito.
Não me venham é com os custos. Esta triste câmara municipal vai pela segunda e desastrada vez realizar um coisa pindérica chamada “grande circuito da Boavista”. Duvido que aquilo dê sequer para pagar a propaganda. Seguramente não leva o enlameado nome da cidade a parte alguma, excepto a Matosinhos que se ri à gargalhada e tem um sólido programa cultural. Mas Matosinhos é gerida por gente inteligente. Como Gaia, agora sede de uma série de organismos culturais que já foram do Porto. Até a Maia. E ainda há-de chegar a vez de Gondomar passar as palhetas ao Porto, com o sem major Loureiro. Por cá reina esta vil e apagada tristura a que nem o La Féria consegue dar brilho.
A segunda questão que se põe é esta: a “cultura” promovida municipalmente é para dar lucro? Se sim, porque é que andam a gastar dinheiro com o apoio ao S João festa retintamente popular que não precisa de nada da Câmara? Aliás precisaria de uma postura municipal a proibir os martelos de plástico, mas isso é areia de mais para a camioneta municipalizada...
E continuando: acaso a “Casa da Música” dá lucro? E se não der, o que é que se faz? Vende-se para lupanar moderno apropriado a jogadores de futebol e da bolsa?, Faz-se um salão de bingo? Alguém dirá que a CM tem uns mecenas. Mas será que alguém acredita que o mecenato cobre tudo? Aqui e hoje? E nesse mecenato há só privados generosos (!?) ou também entidades públicas e institucionais? E se houver, donde vem a sua contribuição senão dos bolsos dos contribuintes? Alguém acredita (há gente para tudo mas para tanto...) que o Museu de Serralves ou o Coliseu do Porto se fizeram com mecenas? Desconhecer-se-á que o Estado e as autarquias entraram com a parte de leão na compra, no arranjo, no pagamento de actividades durante anos. E que se calhar ainda entram forte e feio na contribuição para a manutenção desses organismos?
Portugal é um país de brandos costumes e de brandíssima desatenção. Só assim se percebe que os arautos do privado a todo o custo são as mesmíssimas pessoas que ao menor arrepio, uivam, gritam, imploram a intervenção do Estado. É vê-los a bramir porque a China nos enche de camisas, porque a Espanha vende cá a melhor preço a fruta, porque há que travar a emigração e, já agora, a imigração.
A questão de um Rivoli municipal ou privado é pois uma falsa e estúpida questão: é possível ter um bom programa cultural, diferenciado, agradando a gregos e a troianos, com um orçamento claro. Isso passa-se com o Coliseu que consegue navegar neste encapelado mar sem especial sobressalto.
À Câmara cumpriria apenas ter algum bom senso. E algum bom gosto se isto não fosse (mas é) pedir muito.
gravura: Matisse, claro: la joie de vivre