diário político 229
La Cina é vicina
d’Oliveira fecit Outubro de 2020
Causou natural burburinho a entrevista do sr. George E Glass, actual embaixador americano em Portugal. Nos meios diplomáticos usuais não é normal, longe disso, uma linguagem tão brutal quanto a que foi usada pela criatura.
Em boa verdade, o sr Glass não é um diplomata de carreira, antes um embaixador vagamente político eventualmente nomeado por ter sido um apoiante financeiro da campanha de Trump. Para países como Portugal, há muito o hábito de enviar este tipo de personagens como agradecimento dos seus anteriores préstimos.
É duvidoso que este embaixador saiba qualquer coisa sobre o país para além do que eventualmente terá aprendido nos últimos anos. Será por isso que a entrevista que concedeu foi tão divulgada e comentada. Ele disse em termos crus e pouco elegantes o que provavelmente um membro da carreira diplomática americana sugeriria sempre entre vénias e mesuras.
Convenhamos: a importância de Portugal no quadro da campanha anti Huawei é diminuta e pouco risca. E risca ainda menos quando se sabe que, num caso destes, a questão do 5 G, o governo português acolher-se-á sempre ao guarda chuva da U E.
Todavia, o homenzinho lá veio com o seu discurso vagamente ameaçador e isso incendiou as opiniões. Eu, mesmo, fiquei profundamente irritado pela desfaçatez mesmo se compreenda o fundo da questão em que Portugal é um parceiro menor, entre os menores.
O sr Ministro dos Negócios Estrangeiros já respondeu e o sr Presidente da República não se coibiu de vir dizer que Portugal é um parceiro económico da China há 500 anos.
Não é exactamente assim, Sª Ex.ª que me desculpe o arrojo. É verdade que portugueses dispersos e em ordem dispersa, por sua livre iniciativa aportaram à China a partir eventualmente de 1540 e tentaram fazer negocio com as populações locais. Em boa verdade, basta ler atentamente o “Tratado das cousas da China” de fr. Gaspar da Cruz para se perceber como esta relação comercial se ergueu, de quando em quando, por períodos limitados e iniciativa privada. E de como o comércio era substituído pela pilhagem quando os portugueses se sentiam seguros. Há, aliás, e da mesma época, cartas de cativos portugueses em que se expõe em toda a sua crueza este género singular de relações que, de resto, eram idênticas às das relações fortuitas que se estabeleciam com outros povos da região.
Por outro lado, a pequenez lusitana nunca suscitou uma ampla corrente de trocas comerciais com a China, E o exemplo de Macau nada tem a ver com isso nem nunca os chineses enquanto Estado lhe deram especial importância.
De todo o modo, deve-se a portugueses alguns dos primeiros documentos sobre a China e o Tibete e esses textos estão publicados entre nós mesmo hoje em dia.
Eu não faço a mínima ideia quanto ao perigo da espionagem chinesa via Huawei. Estou, porém, predisposto a aceitar que num país totalitário todos os seus agentes económicos devam forte obediência ao Estado e, no caso em apreço, ao Partido que o controla ferreamente.
Esta é uma das enormes diferenças entre o “Oriente” e o Ocidente tal qual o vemos e habitamos. Por cá, a grandes empresas dão-se ao luxo de não acatar as orientações do Estado. Bastaria lembrar um exemplo caricato. Quando os Estados Unidos boicotaram os jogos olímpicos de Moscovo, uma empresa americana, a Coca-Cola subsidiou a representação portuguesa. O Secretário de Estado da altura , e meu amigo, Joaquim Barros de Sousa contava divertidíssimo a conversa com um representante da empresa que, inquirido sobre a proibição americana lhe terá dito mais ou menos o seguinte: o Governos dos E U A é o governo dos E U A e a Coca-cola é a Coca-Cola, ponto final, parágrafo.
Como é evidente, ninguém está sequer a imaginar um dirigente da Huawei a dizer algo de remotamente semelhante sobre as relações da empresa com o governo chinês.
Aceito, até, que não é de todo improvável que o “patriotismo” da Huawei a leve a comunicar ao Governo algo que este peça (ou imponha). Não tenho qualquer prova disto como não tenho qualquer prova de mil e uma coisas que se passam ou passaram na China pelo menos desde que o poder passou para as mãos do PCC.
A China nunca foi algo de totalmente transparente para o Ocidente. Sempre se lhe associou uma farta dose de mistério e exotismo desde o “Milhão” de Marco Polo, esse livro que incendiou as imaginações de todos os europeus e que ainda hoje é lido fervorosamente.
Curiosamente, os nossos exploradores na China contraditaram por várias vezes a descrição maravilhosa de Polo mesmo tendo em conta que chegaram lá mais de dois séculos depois. Todavia, as descrições, algo têm em comum, desde a imensidão da terra, a administração eficiente do território, a disciplina dos súbditos do imperador e a opacidade da governação.
Quando Mao tomou as rédeas da China (e digo Mao propositadamente e não o PCC de que ele dispôs e moldou várias vezes, eliminando companheiros de sempre com um grande à vontade) o segredo e o mistério não só não desapareceram mas tornaram-se até um modo de funcionamento do Estado. A China esteve sempre fechada ao estrangeiro, União Soviética incluída que, no máximo foi tolerada enquanto foi necessário, e as variadíssimas reportagens sobre a China “nova” foram sempre fundadas no conhecimento imperfeito da língua, na vigilância constante dos visitantes que nunca conseguiram pôr pé em ramo verde e na absoluta perseguição dos mínimos desvios internos.
Ainda hoje, se desconhece exactamente o número de vítimas do Grande Salto em Frente e mais ainda da Grande Revolução Cultural e Proletária. Aliás, nem sequer se tem uma noção rigorosa do número de vítimas da “Longa Marcha”, da Guerra Civil as mais das vezes travestida em guerra patriótica contra os japoneses , mesmo se uma forte percentagem dos confrontos fosse com as forças de Chiang Kai Chek e do Kuominang.
(aliás também ninguém conseguiu saber quem era o homem que na praça Tien An Men desafiou uma e outra vez os tanques da repressão. É caso para dizer que aquela longa tradição de segredo e mistério tem de longe em longe algum efeito positivo)
A China (a República Popular da China) é uma potência mais que emergente. É a 2ª ou 3ª maior economia mundial e dá passos gigantes para tentar ultrapassar os EUA A sua política comercial agressiva, o facto de ela ser pensada estrategicamente desde Pequim, a “nova rota da seda”, a cooperação inteligente com umas dezenas de países pobres que não obtém investimentos idênticos nas antigas metrópoles ou nos EUA, tornam a América de Trump e do embaixador Glass, num adversário semi vencido sobretudo porque o actual inquilino da Casa Branca ainda é mais isolacionista que qualquer dos anteriores presidentes isolacionistas americanos. E mais ignorante, infinitamente mais ignorante. Trump olha para os seus eleitores mas escapa-lhe a América e o slogan make america greta again leva-o a desprezar aliados antigos e seguros (incluindo o Reino Unido!...)Mais um mandato de Trump e a China terá vencido a corrida.
Com Huawei ou sem ela. Com o porto de Sines ou sem ele. Apesar da pesada impertinência de Glass, um industrial caído na diplomacia sem qualquer espécie de preparação e sem conhecer sequer o mundo, já nem falo de Portugal.
Trump, basta ver como se veste, como se penteia, imaginar como consegue viver naquela horrenda casa de Nova Porque, cheia de dourados esdrúxulos, usando uma sub-língua de retardado mental e uma sintaxe que arrepela o mais tolerante, mesmo quando pões o dedo na ferida, consegue, como um elefante numa sala cheia de bibelots, causar um destroço espantoso.
Que esta criatura esteja a disputar a reeleição é algo que tira o juízo a qualquer um. Que haja, por aí, uns tolinhos que sustentem a teses que entre um e outro dos candidatos venha o diabo e escolha, é algo que me assusta. Joe Biden já não é novo mas tem uma longa biografia de homem decente, cumpriu honrosamente toda uma série de mandatos como senador, foi o nº 2 de Barak Obama e é conhecido pelas suas posições moderadas e pela defesa dos direitos das minorias a quem deve a nomeação como candidato. Conhece bem o mundo pois dirigiu a influente comissão de Política Externa. Tem uma preparação académica de qualidade tendo obtido o grau de “júris doctor” na Universidade. Poderá não vir a ser um grande presidente mas será sem qualquer dúvida um presidente muito aceitável quer interna quer externamente.
Infelizmente nós não podemos votar ao contrário de uma série de grunhos ultra racistas, bisonhos, ignorantes, sexistas e religiosamente fanáticos. E é nesse campo onde a eleição também se joga. Que Deus abençoe a América e lhe inspire algum bom senso, exactamente o que falta a muito híper crítico de cá.
Na vinheta: um fotograma de “la Cina é vicina” filme de Marco Bellochio (1967) e que marcou muito alguma malta da minha geração. Prefiro-o a “La Chinoise” de Godard, mesmo ano, mas claramente mais confuso. De todo o modo, ambos prefiguram algo que irá rebentar no ano seguinte e que, obviamente ainda é um marco absoluto cinquenta anos depois.