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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

missanga a pataco 13

d'oliveira, 27.05.07



Quarta carta à Sílvia sempre em tom de má língua

Pois é querida Amiga, você aí abandonada nessa triste negrura que, como se sabe, é o Rio de Janeiro, à beira de um mar frio, bom para focas e pinguins e nós cá na maior a celebrar o 3º ano incursionista num restaurante amável no Passeio das Virtudes. Passeio das Virtudes é o nome da rua que se alcandora sobre o rio bem lá em baixo e não substantivo a nomear os inomináveis seis alegres convivas no restaurante A Rosa, escolha sempre inteligente e acertada do nosso JCP. Passeio das Virtudes é nome recente, enfim de há dois ou três séculos, nome de uma quinta brasonada de que hoje resta parte do solar transformado em sede da “Árvore, cooperativa de actividades artísticas”, coio de malfeitores (pintores, gravadores e escultores, tudo gente de desconfiar, claro que isto de artistagem é o piorio...).
Na verdade o lugar chamava-se “mija velhas”, como bem me ensinou o Manuel Matos Fernandes que já descansa à mão direita do Senhor. Confesso que não sei de onde vem o apodo, coisa feia; mija velhas?, seriam bruxas?, excomungadas?, mulherio de maus costumes já em pré reforma nesses tempos bárbaros em que os quarenta anos significava pés para a cova? E mijariam as ditas cujas? Mija velhas é seguro. Ali mesmo a cem metros da velha porta do Olival, da muralha da cidade, do antigo bairro judeu dito de S. Miguel, tudo isto extra-muros do velho burgo na altura pertença do bispo da cidade. Depois os poucos burgueses revoltaram-se, o rei interpôs-se e o bispo ficou reduzido aos altos, catedral e seu paço e cá em baixo a arraia miúda folgou.
Mas perdi-me. O que eu queria era contar-lhe o repasto, a festividade. Claro que, marcado para as oito e meia, só começou às nove e tal. Eu que cheguei a horas tive de esperar pelos nossos amigos uma boa meia hora! Depois lá foram chegando, sem vergonha alguma, sem desculpa alguma, enfim o costume. Só o Mocho Atento é que murmurou qualquer coisa como uma consulta tardia a um cliente. Estou a ver que algum desgraçado apareceu por lá fugindo da cadeia ou dos credores e o Mocho, zás!, anda cá que já bebes!. Deve ter ganho com que pagar os próximos cinquenta jantares incursionistas que clientes de advogado à sexta feira é sempre ocasião para ganhar a semana.
Do jantar pouco lhe conto. Tivesse estado presente, ora essa! Todavia sempre lhe digo que o arroz de garoupa à moda da ilha de Luanda era mimoso e bem fornecido e que a subsequente carninha mereceu elogios de toda a gente. Os vinhos cumpriram com brio e os morangos em molho de chocolate (e algum álcool branco que me escapou) estavam óptimos. A coisa aliás foi assinalada pelo nosso JCP que sacou de um enorme charuto, desses verdadeiros e caros, que fumou com indizível deleite. Parecia uma dessas velhas locomotivas do oeste americano que mesmo no cinema deitam fumo para toda a sala, está a ver o género?
Claro que os derradeiros resistentes, conversaram que conversaram até ás três da matina, à porta do restaurante, numa noite quente (ou que a amizade fazia quente), uma dessas noites que prenuncia o S João mas sem orvalhadas, uma noite pura e limpa, aconchegada que se recheou de historietas e gargalhadas. Temos de repetir estes encontros com muito mais frequência pois são agradabilíssimos. E mais serão consigo presente. A menos que queira que esta alegre e galhofeira trupe se desloque para o Rio de Janeiro...
Receba para si e para todas as leitoras que nos acompanham um beijao deste seu
mcr

Na gravura: mostruário de charutos cubanos, de Cuba, do género que o JCP consome...

missanga a pataco 12

d'oliveira, 26.05.07



Fraquinho, fraquinha...


Eu bem tento entusiasmar-me com a Feira do Livro (a do Porto, convém esclarecer...) mas confesso que ontem a expedição correu mal.
Apresentei-me logo pela abertura para evitar o povo ávido de cultura, as criancinhas sedentas de leitura e um tipo que costuma encontrar-me, maravilhar-se com a minha presença, entabular conversa e finalmente sacar-me um empréstimo por conta de um emprego em que vai entrar dali a dias. Tem um estilo extraordinário e uma coragem fora do comum. Eu só o reconheço a meio do show e, nessa altura, fico atrapalhado porque não consigo correr com ele. Normalmente liberto-me com uma pequena dádiva porque de facto não tenho lata para o pôr com dono.
Dizia que a expedição teve fracos resultados porque, sendo um leitor contumaz, começo sempre por dar uma vista de olhos, comprar alguma coisa que me surpreenda, e munir-me dos catálogos que, posteriormente lerei no remanso de uma esplanada ou em casa, anotando futuras compras e certificando-me que não tenho os livros que ambiciono.
E comecemos por aí: algumas das editoras interessantes ainda não tinham catálogos disponíveis. Convenhamos que isto denota uma falta de profissionalismo das gordas. Provavelmente guardaram os poucos catálogos disponíveis para Lisboa e a província que aguente. Se fossem função pública o que não se diria. Mas são empresas privadas e a essas tudo se perdoa...
Segunda observação: os livros do dia são, no mínimo, penosos. Uns monos que nem para assentar uma mesa desequilibrada servem. E o desconto, 20%, não é entusiasmante nos poucos que são menos abortivos.
Terceira observação: a Feira é feita por editoras que, para vender os livros, fazem preços baixíssimos às grandes superfícies ou às principais cadeias livreiras. Mas, mesmo que esqueçamos o desconto imoral que fazem a estes clientes, poder-se-ia pedir que na venda directa fizessem um preço ligeiramente superior ao que fazem aos distribuidores. Ou pelo menos o desconto que se faz aos livreiros e que nunca é inferior a 30%. É que aqui o lucro é imediato, não esperam pelo pagamento 90 ou 120 dias.
10% é o que a FNAC e muitas livrarias nos dão correntemente. Ou seja: não vale a pena ir à feira, perder tempo, sofrer um calor infernal, apanhar encontrões, ser cravado pelo preopinante de que acima falei. O lucro imediato de que já falei permitiria um esforço que parece ninguém está disposto a correr ou a pedir. Depois queixam-se do fraco resultado da feira...
Em suma: se forem à Feira comecem por ler os catálogos porque à vista do público estão os monos a empandeirar depressa ou os livros que “ficam bem” numa estante na sala. Os outros há que procurá-los nas estantes da barraquinha se é que lá estão.

A gravura é apenas a fotografia dos incursionistas presentes no jantar (excelente) do Porto. Da esquerda para a direita: a Guilhermina (o meu olhar) o Joaquim, marido da anterior e incursionista honorário, o José Carlos Pereira (JCP) o “carteiro” (Coutinho Ribeiro agora estabelecido no Anónimo, blog a não perder) , o David Ribeiro (mocho atento) um tipo com uma piada extraordinária e finalmente mcr com menos dez quilos do que no ano passado.

O tempo esse grande simplificador 7

d'oliveira, 03.03.07

Em Murnau am Staffelsee
Esta vai para o meu caro leitor José, um leitor que todo o escrevente gostaria de ter porque volta e meia me põe questões que me obrigam a dar uso às meninges, les petites cellules grises, como dizia o inestimável Poirot, leitura que sempre recomendarei muito embora Agatha Christie esteja fora de moda. Como, aliás sempre recomendei Somerset Maugham ou Steffan Zweig que andaram quarenta anos no purgatório das leituras porque um par de imbecis escreveu que estavam démodés. Démodé a mãezinha que os pôs!
E agora que escorri algum fel, guardado há demasiado tempo vamos às nossas encomendas. O nosso amigo José delirou com “a paisagem do Staffelsee” da Gabrielle Munter. E, a modos de zangado, apostrofou-me. Que não a encontrava no google, logo ela com aquele sentido da cor, e isto e aquilo, e terminava com um imperativo pedido, passe a contradição, diga coisas da Munter e da Baviera.
Claro, caríssimo amigo, pois não! Permita-me que apimente o texto com uma história que tendo já vinte e um anos, pode contar-se sem problemas. Ainda por cima ocorreu em Murnau.
Foi graças ao Dr Himmel, director do Goethe Institut (G.I.) no Porto que obtive, sem a pedir, uma bolsa magnifica para estudar alemão no G.I.. Aliás foi também ele quem me sugeriu Murnau. “Você já conhece Berlin e uma parte do centro e do norte da Alemanha, vá ver a Baviera, olhe que vai gostar”. Propus-lhe, então, Munique mas era difícil ter vaga e acordámos que Murnau era um excelente local. Perto de Munique, na zona das grandes estações de ski, perto da Áustria, enfim um must. E ala que se faz tarde para dois inteiros meses de alemão intensivo e em completa imersão.
Confesso que a primeira impressão foi desanimadora. Parti para a Alemanha em princípios de Maio de 86, convencido que lá, como cá, a primavera me esperava radiosa. No comboio que liga Munique a Garmish-Partenkirchen o céu começou a ficar escuro e subitamente, pelas quatro e meia da tarde fez-se uma espécie de noite enquanto a neve caía abundante. Quando, cerca das cinco, desembarquei na pequena estação de Murnau não só não havia vivalma para me dar uma informação mas ainda por cima fazia um frio horrível que eu sentia ainda mais porquanto trazia por único agasalho um casaco leve. Isto do casaco em viagem, e da gravatinha a condizer, vem de um amigo meu, o Zé Ferraz, que não dava um passo além fronteira sem o inevitável blazer e uma gravata. “É que poderei ter de ir falar com o cônsul para me repatriar”, argumentava. Também eu me temia duma súbita falta de cacau de modo que durante muitos anos o casaquinho azul fazia parte da bagagem. E para não se amarrotar na mala era o que levava sempre na partida e na chegada. Portanto, mcr em Murnau com neve a dar por um pau cheio de frio à espera de um milagre. O milagre veio na forma de um táxi que me conduziu a um hotel onde sem querer saber de preços me apontei por uma noite. Mudei de roupinha e apesar de não ter muito para escolher lá me agasalhei como pude e vim até à sala do bar-restaurante onde fumei um par de cigarros para fazer tempo. Lá fora o negrume era absoluto. Um empregado solícito perguntou-me se queria jantar. Às seis da tarde! O frio, o isolamento, o descoroçoamento, deram-me motivos mais suficientes para aceitar aquela insólita hora para jantar. Valha a verdade que partira de manhã e o almoço no avião não fora de modo algum festim para recordar. Recordo-me que o homem, porventura condoído com o meu aspecto de lusíada emigrado, me trouxe uma travessa com um “Eisbein” gigantesco, acompanhado de batatas e Sauerkraut. Quem me conhece desses tempos sabe bem que, numa época normal e com vento a favor, eu seria capaz de comer aquilo e de rematar com uma café e um excelente conhaque. Mas, nesse dia, fiquei-me por um miserável terço do pezinho de porco e nem sequer fui capaz de beber a caneca de cerveja que me trouxeram. Foi a primeira e única vez da minha vida bávara que não me aguentei com um litro de cerveja.
Às seis e pouco estava em vale de lençóis arrenegando do mundo, da Baviera, da neve e do dr. Himmel.
Claro que no dia seguinte, o sol conseguiu espreitar vagamente e apesar da neve ter palmo e meio de altura, consegui chegar ao Goethe, inscrever-me e encontrar a casa onde iria viver durante dois meses. Ficava, caro José, dentro de um pequeno jardim, num pequeno alto de onde, uma ladeira suave caía entre árvores antigas e robustas para um lago, o Staffelsee!
E agora Murnau que se faz tarde. Murnau, meu caro, é uma pequena cidade dessas que aparecem nos calendários, janelas floridas, ruas escrupulosamente limpas, cavalheiros vestidos à tirolesa, que o mesmo é dizer à bávara, calção de couro, suspensórios e um chapéu adornado por uma pena. As damas usam aventais e decotes generosos, benza-as Deus, e todos, em vez de dizerem Guten Morgen largam uns “grüss Got!” que avisam o peregrino que aquela é terra de Deus, da Contra-reforma, e do grande barroco alemão. Católicos até ao sabugo, há que dizê-lo. Bebedores de cerveja sem rival. “Weissbier” na generalidade, isto é uma cerveja “branca” como o nome indica que finalmente é a velha cervejola de sempre com uma adição de trigo se a memória não me falha. Murnau, obviamente tinha a sua própria fábrica de cerveja, local altamente aprazível onde aprendi imenso alemão e, de passada, namorei o meu bocado (nos quoque gens sumus et bene cavalgare sabemus” se é que V. recorda o “Palito Métrico” e praxes associadas...). Para terminar o apressado retrato da cidade, direi que Murnau é mais pequena do que Caminha e infinitamente mais civilizada. A pontos de ter, nos dias de grandes concertos ou ópera em Munique, um autocarro à disposição do povo melómano que nos levava e trazia por um preço ridículo. Tinha, e deve ter ainda, alguns hotéis, dois ou três supermercados, duas lojas de discos, duas ou três livrarias, excelentes restaurantes. E a mata. E o lago! (Um aparte, esse lago está rodeado de floresta, alguns bares restaurantes e jardins. De vez em quando a nossa professora levava-nos até lá para aulas ao ar livre. Numa dessas felizes ocasiões, aproveitando o sol, um grupo de aborígenes do sexo feminino banhava nas frias águas e tomava banho de sol em topless. Imagine a excitação dos meus jovens colegas (eu e o embaixador da Austrália na Alemanha éramos as duas excepções etárias num universo de gente entre os 18 e os 25/30 anos.) Eu próprio, devo confessar, sem qualquer espécie de remorso, que lavei o olho portuga e luzidio nos peitinhos arrogantes das bavarazinhas.
E a história, perguntará, a prometida história? “História picante, espera-se” dirá o leitor Bruto da Costa, amador de caril forte e carne fraca. Bem, a história conta-se em três frases. Eu, em Murnau, estava, como se diz, livre e alodial, aliás era na altura um cavalheiro divorciado. De modos que encontrei uma alma gémea, nada e criada na terra que além de umas gratas lições de alemão coloquial me deu alojamento temporário. E foi justamente esse alojamento, ou melhor o primeiro dia, o DIA, em letra grande (enfim a noite para sermos mais precisos) que, depois de um belíssimo jantar à luz de velas num extraordinário restaurante italiano que espero se mantenha pois era fabuloso, se deu o que se tinha de dar. Passemos um véu espesso sobre o que naturalmente se passa nestas ocasiões, pois há ou pode haver leitores jovens por aí e cheguemos à hora nefasta da madrugada quando o dia tenta aparecer. Dormíamos o sono dos justos quando de repente um som, um estrépito, um ronco da mãe terra seguido de profundos estremeções na casa, na cama, no meu miserável corpo, me acorda em sobressalto. A casa tremia. Um cataclismo pensei ainda com a mente enevoada mas já com o susto bem presente. Acordei a alemã com dois berros e um abanão capaz de despertar uma moribunda. A moribunda dignou-se abrir um olho e depois dois acabando por abrir a boca numa gargalhada que atribuí ao meu ar nu e tiritante à beira da cama. Um tremor de terra e esta desgraçada ri-se, pensei no mais puro português de que fui capaz. E ela ria. E eu atrapalhando palavras em alemão, francês, espanhol, italiano, inglês, talvez mesmo em ronga ou makua da minha juventude nos trópicos, perguntava-lhe porque se ria, prevenia-a dos perigos do terramoto, e ela ah, ah, ah agarrada à barriga, numa pose que seria lasciva se a casa não tremesse e a roncadeira não aumentasse. Encurtemos: a casa da Kerstin ficava num extremo da cidade ao pé de um quartel germano-americano. Um regimento de tanques, para ser mais preciso. E os tanques todos os dias tem de ser postos a trabalhar não fora dar-se o caso dos russos virem por aí fora de faca nos dentes para malhar nos inocentes ex-subditos do rei Luís II o parvo das manias wagnerianas e dos castelos de conto de fadas. Daí a barulheira infernal e a tremedeira do solo. Se você já viu um tanque (um tanque e não essas chaimites de caca do 25 de Abril!) imagine umas boas dezenas a trabalhar paradas ao mesmo tempo.
Vinte e um anos depois dou graças a um qualquer Deus, sobretudo ao dos amantes lusíadas exilados nas estranjas, por não permitir que a hora dos tanques fosse digamos aí pela meia noite, hora do lobo, hora dos jogos de mão, jogos de vilão, hora do amor e da cama amiga... Imaginem o desaire do lusitano assustado mesmo na hora da verdade. Credo! Abrenuncio!
E a Munter, perguntará V. invejoso. Ora a Munter vem aí em cima, que para seu prazer aqui lhe pus um Franz Marc (cavalo na paisagem). Da mesma escola, da mesma época, da mesma categoria.
Es lebe der Blaue Reiter.

Franz Marc: elemento importante do Blaue Reiter. Nado em Kochel a 15 quilómetros de Murnau, Morre na carnificina de 14-18. Hitler e capangas consideram-no como autor de "arte degenerada" A besta do pintor de paredes era assim, que querem.

O tempo esse grande simplificador 6

d'oliveira, 15.02.07
O Zeca a saque

“Senta-te aqui que te quero apresentar um gajo porreiro!” – disse-me certa tarde o Jaime Magalhães Lima, no Mandarim de saudosa memória. O Mandarim agora é um mac-qualquer coisa ou um entreposto de hamburguers , nem sei bem. Naquele tempo era um café, snack bar e restaurante como devia ser, estava aberto até às duas da matina, hora em que, cabisbaixos decidíamos atravessar a Praça da República e desaguar no Moçambique (“capital de Angola, é uma homenagem”, dizia o Fontes, seu proprietário). “Os senhores doutores emborracham-se no Mandarim e vêm vomitar para o meu estabelecimento." –outra vez o Fontes (em frase imortal dirigida ao João Amaral que Deus tem e ao Zé Quitério que ainda por cá anda sempre de olho onde se come bem semanalmente à disposição dos fregueses com aquelas crónicas inteligentes e bem escritas. Saravah Zé!).
Cortemos a eito esta digressão para introduzir o personagem desta crónica: o Zé Afonso chegado não sei donde por via de um exame qualquer de Pedagógicas ou coisa semelhante, com um par de poemas a tiracolo e entre eles o “ Meninos do Bairro Negro”. Eu o Jaime lemo-lo em primeira mão aturdidos, comovidos, entusiasmados e mais sete adjectivos que alguma leitora caridosa queira emprestar. Éramos, dizia o Zeca, os primeiros leitores, vejam só! Isto é uma medalha que trago guardada há quarenta e tal anos.
O Zeca não me era inteiramente desconhecido, claro, que Coimbra era uma aldeia, mas, de facto, nos primeiros sessentas aparecia de fugida, porque já dava umas aulas não sei bem onde. Todavia conheciam-se-lhe uns fados, a Balada do Outono, que o meu Pai, coimbrinha dos quatro costados, todo associação dos antigos estudantes lá pelas áfricas, muito faduncheiro, achava de grande qualidade. Ou seja, o Zeca fazia a ponte entre a tradição pura e dura e os novos tempos de que ele seria o grande cantor.
A partir desse momento tive mais uma amigo e o Zeca mais um admirador.
A partir daí fomo-nos encontrando sempre assim, quase de surpresa, num recital, numa vinda a Coimbra, num disco novo.

2 E nisto de discos novos, muito haveria que contar. Por exemplo: anunciava-se sigilosamente um disco do Zeca. O segredo, claro, era manteiga em focinho de cão: meia hora depois cinquenta indivíduos ensimesmados encontravam-se por acaso na Casa Neves, na Baixa, encomendando em voz baixa o disco. A menina do balcão puxava de um caderninho e dizia, igualmente conspiratória: "fica com o nº 96." Porra, pensávamos já há quase cem à minha frente, como é que isto foi possível? E saíamos recatadamente, sob o olhar invejoso dos que estavam na bicha, para ir beber um café à Brasileira. Aí, sempre do lado esquerdo de quem entrava, em mesas carregadas de oposicráticos, bichanávamos: vai sair mais um disco do Zeca! "Já encomendei”, respondia invariavelmente o António da Cunha Pinto, autor (sob o nome de Lionel Brim) excelente de livros que ninguém lê por serem difíceis!!!

3 Uma noite no Avenida, eu e o Anto, nem acreditávamos no que ouvíamos: O Zeca cantava coisas completamente diferentes do que lhe conhecíamos (a formiga no carreiro etc... e o António Lopes Dias, arrepiado, murmurava: "este gajo! Este gajo!" E ia nesta ladainha um respeito, uma admiração, um saber do ofício de poetar que nem vos conto!
E o resto da malta? Pois o resto da malta, passada a primeira e abissal estupefacção, habituava-se, aplaudia e no dia seguinte já cantavam num café, numa república ou em qualquer outro sítio as novas coisas do Zeca. Com naturalidade! Como se sempre as tivessem ouvido. E nisto, de ouvir, decorar, cantar, havia duas criaturas espantosas: o António Mendes de Abreu e o João Nazaré (um morto e saudoso e outro vivo e igual ao que era!). Foram estas duas fadas madrinhas que, num recital fabuloso nos jardins da AAC que recordaram ao Zeca uma cantiga de que ele se esquecera: “...ouvem-se já os rumores , ouvem-se já os clamores...” etc. O Zeca, muito sério só dizia: "Ó pá isso até nem é nada mau!" Previdentemente, eu já tinha o texto escrito, “Toma lá, vê se o não perdes”.

4 Numa manhã ensolarada subia eu a rua de Santo António –desculpem-me lá mas eu prefiro o doutor da igreja mesmo franciscano e santo, à homenagem à revolta do 31 de Janeiro, erro estúpido e trágico provocado pelo voluntarismo carbonário de uns quantos republicanos de cabeça quente. - e dou de caras com o César Oliveira que vinha triunfante: Ele e o Mário Brochado Coelho tinham negociado um excelente contrato para o Zeca com uma editora do Porto (seria a Orfeu?). Se bem me lembro aquilo dava por mês uns tostões interessantes. Pela primeira vez, asseverava-me o César, o Zeca é decentemente pago.

5 Em Junho de 77, estava em Madrid com um par de amigos e militantes de uma coisa passageira que se chamou MSU (Movimento Socialista Unificado) e que mais não era do que a última tentativa de ex-militantes do MES, da LUAR e da FSP de organizarem um grupo político entre o PC e as extremas esquerdas maoístas, trotskistas e similares. Amigos espanhóis falaram-nos de um concerto onde o Zeca seria a grande estrela. Tenho ideia de que terá sido em Vallecas grande zona de concentração operária e emigrante. O Zeca entusiasmou-se com a multidão que era quase toda constituída por activistas políticos de duas boas dezenas de partidos minoritários e autonomistas. Vai daí largou, entre duas cantigas, um par de insultos ao establishment local e português onde um filho da puta rimaria com dois merda. Quando lhe fui falar, o Zé, sempre pundonoroso, perguntou-me se não teria sido excessivo. “Ó Zé deixa-te disso, pá, estes gajos não dizem duas sem um caray e um coño só para fazer de virgulas, pá!”. – “Ai, fico mais descansado!

6 Em Maio de 1983, a Delegação Regional do Norte da Secretaria de Estado da Cultura, atreve-se, no meio de um escândalo murmurado pelos corredores lisboetas, a programar José Afonso no Auditório Nacional Carlos Alberto. Foi a primeira vez que um cantor de intervenção pisou um palco nacional. Só a história do contrato com o Zé daria uma novela. Por ele, estava tudo bem, desde que lhe pagassem um cachet de 30 contos! Mas nós queríamos pagar mais, ou melhor, queríamos pagar-lhe como pagávamos a qualquer artista que vinha ao ANCA. Em resumidas contas, achávamos que deveriam ser pagas as despesas de transporte no foguete e em primeira classe, o alojamento num hotel e as refeições. Espantado, o Zé perguntava se aquilo não era um abuso. Que não dizíamos, é o que se paga a qualquer concertista que cá vem. Obtido com algum esforço o acordo com o Zeca (Olhem que eu não vos quero causar chatices! Isto assim fica caro!) fizemos as contas ao total da despesa, dividimo-la pelo número de lugares do ANCA e fixamos à justa o preço dos bilhetes. Naquele tempo, achávamos que não era preciso ganhar dinheiro. Convinha apenas não o perder. Os dois concertos foram um êxito absoluto. Salas cheias, gente sem bilhete nas coxias, enfim um delírio. O Zeca entusiasmado. Nós já cheios de projectos para os outros cantores. E um balde de água fria: um ardiloso jornalista de um jornaleco miserável conseguiu convencer o Zeca de que o tínhamos explorado. Ou pelo menos de que viera cantar “por meia dúzia de cascas de amendoins” (sic).
Imaginem-me, desvairado, a correr para Lisboa, para dizer duas fortes ao Zeca. Cartas para os jornais, enfim, o habitual. O Zeca já nem se lembrava dos amendoins. “- Ó pá eu disse isso? Não acredito! Mas desminto, queres?”
Que é que se pode fazer a um tipo destes? Convidá-lo para jantar na “Trave” com o Sérgio, o Vitorino, e o Zé Mário que só diziam: nós queremos ser tratados como o Zeca!
E foram.
Nos corredores da SEC os murmúrios indignados subiam de tom. “Aquela gente lá de cima...”

7 Os anos foram passando, o Zeca voltou ao ANCA, nunca mais ninguém falou de amendoins, lá jantávamos, falando disto e daquilo mas a doença ia minando aquele corpo frágil e gasto. Até que um dia, de Fevereiro de há vinte anos a notícia correu. Ou melhor: nesse dia cumpriu-se um antiga ameaça, vivida irremediavelmente por quem ia sabendo daquele mal tenaz que o desfazia pouco a pouco, que o matava lentamente.

8 Vinte anos depois que resta disto tudo? Muita música da melhor que se fez em Portugal. Um par de poemas dignos de figurar em qualquer antologia. A sombra vacilante de um homem generoso que se expôs a tudo. E isto bastaria para justificar o Zeca. Porque é muito, é do melhor que por aqueles anos cinquenta, sessenta, setenta e oitenta se fez.
Não é preciso dizer que o Zeca é maior do que os Beatles porque não é, nem nunca quis ser. Não é preciso dizer que o Zeca é o Bach ou o Mozart português, porque não o é nem o poderia ser. E se ouvisse alguém dizer isso, primeiro rir-se-ia, depois ficaria sufocado e finalmente talvez dissesse, a tempo e com razão, o palavrão de Vallecas em 77.

O José Afonso foi um cometa. Seminal, no sentido em que abriu portas a muitos outros com o seu exemplo, a sua determinação o seu amor pela música a sua imensa bonomia e a sua generosidade ainda maior. Fez-se musical, politica e culturalmente em Coimbra desde os bancos do D João III até à Faculdade de Letras. Bebeu da tradição popular, da Beira aos Açores, da cantiga coimbrã e de alguns ecos do Lourenço Marques onde viveu. Há naquele ouvido privilegiado muita “marrebenta”, muito, ou algum, kwela da África do Sul tudo temperado por uma solidariedade nunca desmentida com a população negra. Há também, queiram ou não, bastante surrealismo, boas leituras, as melhores diria eu, e essas foram sem dúvida adquiridas, pensadas, mastigadas numa Coimbra que, como a tantos, o atraía e repelia.
Para a minha geração, o Zeca foi um porta voz, uma voz de esperança e um apoio absoluto. Não foi beattle nem Mozart. Não sabia, não poderia, não queria sê-lo.
Não o diminuam com essas comparações.

Vai esta em memória de três justos, de três amigos do Zé Afonso e meus: César Oliveira, António Mendes de Abreu e João Amaral.
E com um abraço para alguns vivos: Mário Brochado Coelho, José Quitério, João Nazaré e Rui Pato , grande acompanhante do Zé.

O tempo esse grande simplificador 4

d'oliveira, 22.11.06
De vez em quando a honra de um gesto sai-nos ao caminho
Reprodução de três cartas trocadas entre MBC e mcr

3. Marcelo,
Muito obrigado pelas tuas palavras e pela tua amizade. O texto é público e poderás fazer dele o que bem entenderes.
Um abraço do
MBC

2. Mário
Li com a atenção devida a carta que quiseste mostrar-me. Devo dizer que não me surpreendeu. Quem te conhece há mais de quarenta anos e tem testemunhado as tuas tomadas de posição desde essa altura lê esta tua carta com a confortante certeza que nem tudo está mal neste triste reino da Dinamarca.
E não fora dar-se o caso de serem cada vez mais raras as atitudes nobres nem sequer escreveria mais do que um sóbrio "recebi, um abraço de solidariedade."
Mas os tempos não estão assim tão fáceis pelo que o melhor é mesmo dizer alto e claro, muito claro, que ao ler o teu breve texto me assaltou uma sensação de regozijo (por ser teu amigo há tantos anos) e de renovada admiração e de orgulho.
Ia acrescentar "esperança" mas não me parece que o forno esteja assim para tantos bolos.
Caso me permitas gostaria de a publicar no blog ou pelo menos de ar eenviar a um par de amigos. Tu mandas.
Recebe, um forte abraço do
Marcelo

1 Exmo. Sr. Eng. POÇAS MARTINS
Comissão de Estruturação
CMPEA – Empresa de Águas do Município do Porto, EM
P.M.P.

M/referência: 3382/0058
V/referência: Provedor do Cliente e Conselho Geral da CMPEA
Ex.mo Senhor:
Na impossibilidade do desejado contacto pessoal em razão de diligências judiciais inadiáveis e não querendo deixar de cumprir o prazo acordado para a minha resposta, venho, por este meio, informar V.Exa. do seguinte:
a) agradeço, mais uma vez, o convite da Câmara Municipal do Porto para integrar o futuro Conselho Geral da CMPEA como seu Presidente;
b) ponderada a situação em todos os seus aspectos cheguei, porém, à conclusão de que não poderei, em coerência, aceitar tal convite pelas seguintes razões:
1. Ocupei durante 4 anos a função de Provedor do Cliente dos SMAS dentro de um espírito de serviço público que correspondia à minha filosofia pessoal de actuação profissional e cívica numa sociedade democrática e numa administração pública em fase de necessária desburocratização e reforma. Fui, para tal, convidado pelo Exmo. Conselho de Administração presidido pelo Eng. Rui Sá. Ao longo deste período - e apesar de algumas dúvidas que, por vezes, me assaltaram – acabei por concluir que a existência de uma Provedoria do Cliente dos SMAS/Porto constituiu uma solução inovadora, corajosa e com comprovados resultados positivos tanto para os mais de 152.000 clientes como para a própria empresa. Tal solução, aliás, inscreve-se num crescente movimento nacional e internacional de defesa do consumidor (especialmente em sede de contratos de massa) e de modernização constante da administração pública. Com efeito, cada vez mais surgem novas Provedorias quer dentro do nosso sector público central ou local quer junto das empresas privadas com gestão mais avançada e socialmente competitiva.
2. A decisão camarária que teve a amabilidade de me comunicar no sentido de a Provedoria deixar de existir na actual CMPEA não acolhe, assim, a minha concordância e não se revela consonante com a experiência concreta já obtida.
3. Por outro lado, analisados os estatutos da CMPEA e, em particular, os arts.11 e 12 referentes ao seu Conselho Geral, verifiquei que a solução agora adoptada – criação de um Conselho Geral - não corresponde à minha maneira de pensar e agir nem se adequa às razões que me levaram a limitar a minha normal actividade de advogado abraçando com entusiasmo uma função de Provedor do Cliente dos SMAS.
4. Nesta conformidade, não vejo que, pela minha parte, seja coerente poder aceitar participar de um tipo de órgão que a prática generalizada noutras instituições sempre demonstrou ser meramente formal, não independente e desprovida de qualquer utilidade prática. Igualmente me parece impossível participar (como se houvesse um qualquer tipo de concordância ou sentido de continuidade) na extinção da Provedoria do Cliente dos SMAS - na sua dupla vertente de defesa dos interesses dos clientes e apoio na modernização dos procedimentos – e sua aparente substituição por um Conselho Geral que prevejo inócuo.
b) peço, pois, a V.Exa. a amabilidade de informar quem de direito desta minha posição face ao convite efectuado.
c) termina deste modo a minha longa colaboração com os SMAS (iniciada em 1982) restando-me, apenas, preparar o encerramento da actividade do Gabinete e apresentar ao Exmo. Conselho de Administração o relatório final estatutariamente exigido.
d) o meu mandato termina em 30 do corrente mês e, atenta a anunciada extinção da função, não se mostra aplicável o disposto no art.6-2 dos Estatutos do Provedor do Cliente, pelo que nessa mesma data cessarão os meus compromissos com os SMAS/CMPEA.


Os meus cumprimentos.
Ao seu dispor,
Mário Brochado Coelho

Ainda que sejam inúteis quaisquer comentários convém esclarecer que Mário Brochado Coelho é advogado no Porto. Frequentou a Universidade de Coimbra quase até ao final do 5º ano, altura em que foi expulso da universidade devido ao seu forte envolvimento na crise académica de 1962. Licenciado por Lisboa advogou sempre no Porto e até 1974 interveio em numerosos processos políticos e sindicais.

O tempo esse grande simplificador 3

d'oliveira, 06.09.06
Louvor e simplificação de um carteiro
que desistiu de entregar correio

oferecido ao Exº Sr. Dr. Coutinho Ribeiro
carteiro de outros e vultuosos méritos
pelo recoveiro do Foco


Um carteiro do doce pais do spaghetti, entendeu lutar contra o sistema, metendo na formidável máquina do Estado omnipotente, o seu pequeno grão de areia. Poderia ter pegado num par de litros de gasolina e numa caixa de fósforo e deitado fogo a uma mata próxima da via Appia; poderia ter carregado um carro velho com botijas de gás, muitos pregos, um relógio despertador e mais uns quantos artefactos fáceis de arranjar e enviar tudo aquilo contra o Quirinale ou San Pietro in Vaticano e bum!; poderia escrever duas cartas anónimas à Ornela Mutti ameaçando revelar ao mundo que ela (impossível sonho de tantos anos atrás!) era de facto um travesti chamado Bernardo e antigo amante do onorevole Andreotti, encarregado pela N’dranghetta napolitana de vigiar-lhe os passos e suavizar a política anti-crime da antiga Democrazia Cristiana de fraca memória.
Poderia, com mais trabalho, mais combustíveis e provavelmente mais cúmplices carrear para o Vesúvio combustíveis e provocar uma erupção terrível como a que sepultou Pompeia, cidade pecadora por excelência como se pode comprovar pelos lupanares que se revelam impudicos aos olhos do turista ingénuo.
Enfim poderia pôr açúcar na gasolina do Ferrari onde corre esse gajo que ganha tudo e provocar um desastre, uma derrota, uma explosão, desfazendo a carripana o piloto e alguns elementos do respeitável público como outrora em Roma os émulos de Ben Hur faziam quando se zangavam.

Fez qualquer coisa dessas? Não. Matou alguém? Não consta. Roubou valores, enriqueceu à custa alheia, pregou algum susto às doces velhinhas que à tarde vão tomar ruidosamente uma tisana ao Caffè Grecco na Via Condotti, atacou acaso as prostitutas que noite pós noite, deambulam pela via Cavour e enquanto esperam um cliente se encomendam a um santo amigo, ali mesmo na quarta grande igreja da Cristandade, Santa Maria Maggiore, que estende a sua sombra protectora pela pobre humanidade que se assoma ao seu adro?
Nada, sempre nada!
Por junto o nosso carteiro, pobre e pequeno Robin Hood em luta contra o sheriff de Nothingham moderno (ou seja o presidente dos CTT italianos) entendeu não distribuir todas as cartas que por mister havia de entregar. Provavelmente, guardou com ternuras de mamma italiana as cartas com tarja preta, anunciando lutos tremendos, desgostos amargos, arrependimentos tardios (lá se foi o Peppino e eu que já não lhe telefonava há anos!...), igualmente desviou do seu triste e utilitário destino cartas comerciais, anúncios exagerados, propostas irrecusáveis que um monte de empresas enviava aos pobres tansos encontrados numa lista telefónica. O que estes terão poupado em sonhos impossíveis, em despesas incomportáveis, em angustiadas respostas, em calafrios ao pagar a centésima “cambiale” devida pela compra de um artigo inútil, caro e feio. Terá igualmente desviado citações de tribunais, sempre ameaçadoras para quem as recebe, idem do fisco, meu Deus o fisco italiano é quase tão perverso, porco, feio e mau quanto o lusitano. Pior: é mais eficiente! Finalmente, que eu não pretendo fazer aqui a lista exaustiva da correspondência desviada (note-se desviada e não destruída) que se encontrou em casa deste combatente da liberdade contra o monopólio estatal da distribuição de cartas, terão sido postas a bom recato cartas de desamor, rompimentos de promessas de noivado, lancinantes apelos de maridos traídos, soluços de mães solteiras abandonadas por sedutores que de Mastroianni nem sequer um Marcello teriam, frenéticos apelos de colegiais internas aos cantores da moda italianos que de S. Remo lhes prometem pão amor e fantasia mas que de mais perto só lhes querem uma coisa, que eu por pudor não digo, e depois não te vejo nem te conheço.


Querido Confrade Carteiro do Marco: não se envergonhe, não se amofine nem se exalte com a façanha deste seu colega transalpino. Louvemos-lhe antes a paciência beneditina de guardar numa casa que não há-de ser grande (lá como cá o pessoal afecto aos correios não nada na abundância!) esses milhares de quilos de cartas, postais, telegramas, tudo atado por fitas de nastro de várias cores, por dia mês e ano (suponho, claro) pronto a reentrar no circuito caso se verificasse a sua necessidade, cartas que, repito, ninguém terá reclamado ou só alguns mais mesquinhos mais nariz no ar, mais exigentes que não perdoam a um postino italiano o direito ao dolce far niente.
O tempo ou a sua passagem simplificam tudo mesmo as cartas urgentes.
Receba um abraço forte, deste seu colega mais velho em coimbrice menina e moça risonha e recoveiro (amador) do Foco.


PS: obrigadinho por ter dado um jeito ao meu texto abaixo. Ou antes : grazie tante

...

Sílvia, 26.08.06
matisse - mulher em frente à janela

a espera

havia apenas o mar nos olhos, uma vaga aflição e a espera amorosamente tecida nas canções, quando a lâmina tirou-lhe a voz da garganta e o oceano do peito. em um só golpe decepou-lhe a realidade e o sonho.

todas as justificativas para a dor são injustificadas quando o amor é óbvio e olha com olhos de esperança.

recapitulados os dias perfeitos, impecáveis, indescrití­veis dias de fascínio, nada mudou. como se um furacão de acontecimentos não a tivesse surpreendido.
"entre as quatro paredes do meu peito, só eu sei. só eu sei o que espero e o que desespero", foi a única pista rara vez sussurrada a alguém.

no mais, permanece sentada à mesma janela de sempre. diz coisas incompreensíveis vez em quando. lê um livro. ouve música. olha em torno como se acordasse do sono. entoa alguma canção qualquer, vai e volta, sorri, diz às pessoas coisas gentis, prováveis. mas permanece lá, nas noites inquietas, a conversar com ele que já não está .
a espera, o desespero, raramente visíveis.
na sala, no quarto , no corpo, em todo lado os sinais do sonho desfeito, que só ela sabe.


silvia chueire

Conto de uma mulher

Sílvia, 29.07.06

Por várias vezes tentou escrever o texto, outro texto, palavras outras. Por muitas vezes saiu da frente do computador e foi sentar-se na poltrona da sala, buscando a forma, o conteúdo do texto que precisava escrever.Algo leve, passageiro. Sabia de uma espécie de ansiedade que a invadia, como se tivesse um compromisso com a escrita. Um compromisso interno, externo, já não conseguia definir bem. Sabia que as fontes para escrever o poema, a prosa, são muitas. Todas ao alcance da mão, da mente. Ao alcance do olhar.
No entanto, apesar disso, apagou todas as vezes o que ia rascunhando.

Não é isso, não é isso, murmurava consigo mesma. Nada sobre o oceano ou a tarde linda lá fora. Nem sobre os flamboyants colorindo o caminho de um vermelho peculiar. Sempre e tudo lugares comuns.E sentava-se novamente em frente à tela branca. As mãos dele por entre a sua blusa e a pele, descendo-lhe pelo corpo, lentamente. Tocando-lhe os seios. A boca na sua nuca. O frisson. Sacudia a cabeça para afastar a memória. E recomeçava a escrever: era uma tarde vazia, a rua...

As palavras dele ao seu ouvido: amo-te, nunca saberás quanto. As palavras dele entrando-lhe pelo peito, gravadas nela. És minha, entendes? Só minha, sabes disso. E segurava-lhe os braços, a carne, abraçava-a com força. O tom trêmulo da voz dele correspondendo ao estremecer dela, à sensação de alguma coisa líquida descendo-lhe pelo corpo, de frio na espinha. O desejo invasivo e uma ternura que nunca sentira. A boca oferecida ao beijo enquanto pendia a cabeça para trás. As palavras dele. És meu amor definitivo, sabes? Nunca mais te deixarei ir. Amo-te, amo-te, amo-te. Para sempre. E ela acreditava. Acreditava e sabia.


Levantou-se e foi à cozinha beber um suco, um café, uma qualquer coisa. Precisava escrever e não queria escrever memórias. Memórias de um tempo há muito passado. Memórias pregadas em si, impressas na sua história. Precisava ver-se livre da memória da paixão, do amor. Ao menos desta intensidade. Precisava reorganizar-se. Era uma mulher que amava a vida, uma mulher apaixonada, e queria de volta a disponibilidade afetiva que um dia tivera. Não queria esquecer a história, o privilégio de a ter vivido, mas apagá-la um tanto. Descer sobre ela véus, fumaça. Nada parecia atenuar essas lembranças nítidas.

Passou pela cozinha e ligou a televisão. A lembrança dele não a deixava. O abraço por trás enquanto faziam qualquer tarefa na cozinha. As mãos nos seus quadris, nas coxas levantando o vestido. Meu amor, amo-te. Nunca esperara por isto. Os corpos fundidos. O desejo dele, fúria e suavidade. As palavras dele. Nunca pensei que amaria novamente, nem que pudesse amar assim. Nunca amei como te amo. Nunca pensei que amaria as tuas palavras. Encantas-me. Fascinas-me. Quero-te minha. Quero-te, sem limites. E ela o amava, sem limites .Os dois conversando depois do amor, a intimidade repartida à meia luz. As pernas, os corpos, plenamente acomodados um no outro, encaixados como peças de um puzzle. Descansados. Sem incômodos. Risos e atenção, carinho. Os livros, os poemas lidos, a música compartida.

Desisto! Escreveu na tela. Desisto. Respirou fundo, rendida.

O ar ou a dor a entrar-lhe no peito.Vencida a resistência, sentou-se na cadeira a chorar um choro manso. A mulher que não esperava mais. Que voara vôos inesperados. Que o amara porque era livre com ele. Que saltara para um abismo de dúvidas sem hesitar. Que o tivera nos braços chorando, o corpo enroscado no dela. Que o tivera em si, perdidos os dois na surpresa de serem um só. Que se perguntara todos os dias porquê. Que construiu todas as hipóteses possíveis. Que conversava todos os dias consigo mesma como se conversasse com ele. Que sabia ser aquele o último amor de sua vida, mas que ainda se dispunha a amar. Que dorme com esses paradoxos. Que ora a um deus – ela que não crê - pela anestesia. Que chora muito baixo para que ninguém perceba e o homem não sinta, apesar da distância, suas lágrimas.


Sentada a mastigar, pedaço a pedaço, o silêncio.


Silvia Chueire

As Pontes e as Ilhas

Incursões, 05.07.06

Não é fácil construir, na nossa vida, pontes.

Há sempre quem lute contra elas.

Mas, quem as alcança, consegue criar amizades, unindo porventura as ilhas que nós somos…

Mesmo que venha a surgir a destruição, algumas dessas ilhas permanecerão unidas.
Cabral-Mendes

Nota: Ponte da Ajuda, Concelho de Elvas