Au bonheur des dames 481
50 anos depois
mcr 16-Abril-2019
Cinquenta anos é muito, muito, tempo. Noutras épocas implicava, quase de certeza, um longo cortejo de mortos piedosamente recordados ou nem isso.
Agora, que a esperança de vida aumentou, com o seu cortejo de ameaças (o ahlzeimer e tudo o resto, o trágico resto) cinquenta anos foi ontem, há sobreviventes em quantidade apreciável o que não diminui ausências dolorosas e injustas (o António Mendes de Abreu, o Fred Fernandes Martins, o João Bilhau, a Fernanda da Bernarda, o “Vává” Sarmento e Castro, o Alfredo Soveral Martins entre muitos mais, por exemplo o Zé Gomes Bandeira...).
Amanhã, no edifício das Matemáticas, acorrerão alguns e num mágico par de horas serão de novo jovens, ardentes, com um feroz e animoso sentido de justiça e uma intensa vontade de ser livres.
Já, aqui, o disse, e repito: a crise académica de 1969 foi a única grande movimentação estudantil que teve no imediato (ou quase) ganho de causa: o ministro da Educação caiu, caiu o Reitor da Universidade, foram arquivados mais de cem processos abertos contra estudantes detidos entre Junho e Novembro de 1969, foram arquivados todos os processos disciplinares contra estudantes grevistas, regressaram de Mafra todos quantos pela sua participação tinham sido sumariamente incorporados na tropa, a AAC não foi encerrada e houve épocas speciais de exames para quem tinha cumprido a greve.
O regime político não caiu, antes arrastou-se penosamente durante mais quase cinco anos. Também não era esse o objectivo dos estudantes de Coimbra que enfrentaram, praticamente sozinhos, durante meses, a repressão académica, política, militar e policial. Também é verdade que a “agitação” estudantil não desapareceu, bem pelo contrário: As prisões de dezenas de estudantes, em Janeiro de 1971 são prova vidente da existência de “réplicas” ao grande terramoto de 1969.
(sou disso, sem alegria mas sem arrependimento, testemunha: fui preso em Fins de Setembro de 69, penei um par de meses nos cárceres privativos da Polícia Judiciária – creio que bati o recorde de tempo de prisão aplicada aos que foram detidos, partilhando com o João Bilhau e o Orlando Leonardo a duvidosa glória de sermos os últimos presos. De facto andámos fugidos durante dois ou três meses. Em 71, voltei a ser caçado desta feita pela PIDE que me hospedou em Caxias por uns meses numa cela com vista para o rio e para um trecho de auto-estrada ou algo semelhante onde me divertia a contar os carros fazendo um campeonato ente os que desciam e os que subiam. Na cadeia vale tudo!)
Todavia, amanhã, não estarei com os meus antigos amigos, colegas e companheiros e devo-lhes, por isso, uma explicação. Ei-la:
Depois de formado, rumei à terra onde vivo, estabelecendo-me como advogado. Nesses anos de brasa, pré 25 A ganhei uma clientela extensa de rapaziada que “mijava fora do penico” e que, por isso, estava sempre com o coração aos saltos que a polícia (política) não fazia greve sequer de zelo.
Quando o novo poder democrático se instalou, foi-me pedido que desempenhasse por tempo limitado o cargo de Presidente de uma Instituição Pública. Aquilo que deveria durar alguns meses, arrastou-se por sete (muito felizes) anos. Como sou canhoto de pata, de coração e torto de teimosia. Rapidamente tive alguns poucos conflitos com a gentinha ministerial. Durante o primeiro desses “encontrões” uma dúzia de altos funcionários meus subordinados, entendeu solidarizar-se e aproveitaram o dia do meu aniversário para me convidarem. Desde essa altura que, todos os anos (e já lá vão quarenta e cinco) há um almoço pago por eles e u queijo da Serra como prenda.
Há já uns anos, resolvi corresponder a tal gentileza, e comecei a convidar o grupo para uma sessão de lampreia. Com o decurso dos anos o grupo de bons, excelentes amigos, tem começado a encolher significativamente. Há umas semanas lá se foi mais um justamente nas vésperas da lampreia que foi adiada. Adiada para (são os meus convidados que escolhem a data) para justamente amanhã. Entre dois deveres de amizade não poderia deixar de dar prioridade aos mais velhos que tanto me ajudaram com a sua competência, saber e diligência.
Partilhei com os meus amigos de juventude valores únicos de liberdade e solidariedade de que me orgulho e não esqueço. Com estes mais recentes, (enfim com estes, encontrados nos anos setenta e cinco e seguintes, descobri o prazer de fazer bem as coisas, de trabalhar para a comunidade, de chegar ao fim do dia com a sensação de ter ganho um ordenado e o respeito dos utentes dos serviços que dirigia.
Acho que isto define, razoavelmente, uma longa carreira cívica e política. A todos eles estou grato. De todos recordo o empenhamento e a amizade.
Eis pois a razão de, mesmo ausente, me sentir presente amanhã quando a malta se começar a juntar nas Matemáticas, ao alto das “escadas monumentais”
Ao Rui Namorado e ao Luís Januário, amigos certos e antigos que me convocaram, um abraço. Está justificada a falta?
E a uma leitora e amiga desde o princípio dos anos sessenta que esteve presente e corajosa na crise de 62, um beijo: há um Xenofonte à tua espera Maria A...
*a gravura: correndo o risco de parecer imodesto, entendi publicar esta fotografia datada de 28 de Maio de 1969, dia em que uma gigantesca Assembleia Magna votou por incalculável maioria a greve aos exames. Fui dos primeiros oradores dessa assembleiae, eventualmente, terei sido o primeiro a defender a ideia de greve. Repito: eventualmente. Na mesa, algo caótica, estão o Gil, eu, o Décio de Sousa e o Silva Pinto. Saravah, companheiros!
Aproveito este momento para recordar mais dois grandes amigos, entretanto, mortos: o João Amaral e o Zé Barros Moura. Como não podia deixar de ser, estavam lá, activos, corajosos e entusiastas.
Creio que esta fotografia esteve durante estes 50 anos inédita. Acho que o seu autor se chamava Fraga, estudante de Direito e mais tarde juiz que se envolveu em conflitos vários com o CSM. Onde quer que esteja, um abraço e a minha total solidariedade.