au Bonheur des Dames 360
25 A Exercícios de memória 1
Entre princípios de Março de 1974 e a terceira semana de Abril o tempo no nosso pequeno escritório de advogados passou numa exaltação quase febril. Um dos nossos estava na tropa, no CICAP, alguns amigos do tempo de Coimbra cumpriam serviço militar no Porto e nas nossas salas sucediam-se reuniões, conciliábulos de todos os géneros que depois se prolongavam nas nossas casas. Para facilitar: vivíamos em estado de conspiração permanente. De um lado, o CONGE, nome que dávamos a uma intermitente e incipiente organização conspirativa nascida em 1969 e que entre outras coisas tentava gerir uma editora (a “Centelha” / “Nosso Tempo” dedicada a editar livros políticos – todos proibidos! – e poesia. Além dessa tarefa, competia aos numerosos sócios, amigos e camaradas criar redes de venda clandestina da livralhada editada para obviar aos efeitos combinados da Censura e da polícia.
Aop mesmo tempo, tentávamos manter autonomamente um agrupamento político de esquerda que estivesse fora dos itinerários tradicionais (PC, o novel P.S. e os grupos ditos “esquerdistas”). Curiosamente, e um dos vários processos em que tive a “honra” de figurar como primeiro titular, dava conta das nossas reuniões mas definia-as como reuniões da “Oposição” (onde cabia tudo, mormente a CDE e a CEUD). Nesse citado processo, uma certa “Catarina” – a informante (que depois identificámos como mulher de um dos mais activos do grupo) acusava-me de “bombista”! Confesso, mesmo com esta distencia temporal, que me passou um arrepio pela espinha. Nunca fui bombista, nunca dei um simples tiro (nem com uma “pressão de ar” e a arma mais perigosa que me passou pelas mãos foi um bonito canhão brinquedo de fabrico alemão, herdado do meu pai e que disparava uns projecteis de borracha graaças a uns fulminantes. Como é que ainda chegou às nossas mãos tal peça é um mistério. Sobretudo com os fulminantes e as munições! Todavia, o canhão desapareceu nos anos cinwuenta, quando fomos para Moçambique e portanto, nesses perigosos anos de chumbo, não tinha nada de realmentre letal em meu poder.
Claro que, nesse grupo, incipiente e conspirativo, nem toda a gente era apenas o que parecia ser. Havia alguns camaradas com presença activa noutros agrupamentos e com tarefas bem mais complicadas. Pelo que me tocava, andava desde 72 metido com uma rapaziada que “passava” políticos, desertores e refractários com, digo-o com alguma imodéstia, inegável êxito. Claro que usávamos de todas as precauções possíveis, compartimentávamos as nossas “passagens”, sempre que possível os nossos clientes desconheciam os nossos nomes, nós os deles e em certos casos chegavam a certo ponto do percurso para a fronteira com os olhos vendados, ou deitados no assento de modo a nem sequer saber em que exacto sítio estavam.
As ligações eventuais a agrupamentos políticos ou a simples grupos de opositores também eram alvo de um grande secretismo a pontos de, mesmo para a distribuição de livros, haver precauções conspirativas relativamente importantes.
No resto do tempo, e era mesmo o “resto do tempo”, trabalhávamos como advogados de sindicatos e defendíamos quantos presos políticos nos vinham bater à porta. Até nisso havia especialidades. A mim couberam-me fundamentalmente militantes da OCMLP/ “Grito do Povo” (mas também fiz uma(s) perninha(s) entre o MRPP) num número que foi crescendo exponencialmente entre 73 e 74. À cautela lá iam passar as procurações para o “caso de...”.
Era, à distância de quarenta anos, uma vida exaltante, arriscada, complicada e, sobretudo, extenuante.
Foi pois neste ambiente frenético que me começaram a chegar ecos de um movimento na tropa. Oficiais do activo, claro, mas muita malta miliciana. Não espanta, aliás. Os jovens milicianos eram carne para canhão e normalmente eram eles que no mato comandavam os pelotões e iam a todas. Tenho, na memória o nome de vários excelentes amigos que lá deixaram os ossos (o Zé Manel Pais, o João Cabral de Andrade, para só nomear um dos últimos e o primeiro dos meus amigos a morrer) que tiveram baixas psiqiátricas terríveis (o Fernando Assis Pacheco) ou que foram feridos com gravidade (o Zé Bento que voltou do Niassa com uma perna artificial).
E foram eles, os milicianos, quem decisivamente modificou as reivindicações corporativas de muitos capitães “de Abril” e lhes deu um fundamento político. Não todos, claro, mas muitos, provavelmente a maioria. Como foram os milicianos que nesses quartéis da revolução quem preencheu todos os postos intermédios e incondicionalmente se pôs ao lado do “MFA”. Convém recordar esta pequena verdade para não ficarmos apenas com as patilhas do coronel Vasco Lourenço na fotografia.
Não nego que depois das Caldas, foi enorme a decepção de muitos de nós, os civis que estavam a par do q ue se passava. Todavia, na nossa micro-sociedade de emigrados recentes de Coimbra, a malta que estava na tropa depressa nos informou que ainda “estava tudo sobre rodas” (pitoresca expressão que nunca esqueci e que nos aqueceu a alma e revigorou o entusiasmo. A última semana antes do 25A foi algo de estrondoso. Não só começamos a ser informados das senhas mas sobretudo, no meu caso, e dados os meus talentos fronteiriços, fui encarregado de organizar uma flotilha de automóveis que pudessem no caso de um azer, levar para longe os revoltosos que se safassem da polícia. Devotei-me a essa tarefa dedicadamente e arranjei seis viaturas e respectivos condutores, gente segura, a saber o meu sogro Jorge Delgado (aliás Sérgio, ex-militante do PC, a minha sogra Alcinda Delgado, sobrevivente do “socorro vermelho”, o Rui Feijó , ex membro da Rede Shell e pertencente aos quadro da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, a Maria João Delgado, minha mulher e a Teresa Feijó (ambas tinham já provado a sua qualidade quer como participantes na crise de 69 quer noutras tarefas ligadas ao auxílio a fugitivos do regime. Eu era o sexto membro dessa quadrilha e quem teria de ensinar os caminhos da raia se a coisa desse para o torto.
A outros amigos e membros do grupo tiinham sido distribuídas tarefas sendo que a mais extraordinária (e abandonada) seria a de utilizar uma casa de um casal do grupo dotada de uma casa de banho interior para aí manter presa alguma alta personalidade militar. Os entusiásticos hospedeiros e alguns dos enlouquecidos amigos discutiram gravemente esse cárcere privado. Alguém alvitrou que o eventual prisioneiro (e preferia-se um general) poderia tentar causar uma inundação abrindo as torneiras. Que não!, protestava alguém os generais têm medo da água. Ainda se se tratasse de um almirante... Retorquia alguém que em Portugal os almirantes eram todos de água doce e políticos pelo que também não deveriam ser especialmente temerários no mar e mesmo uma poça de água dos SMAS os embaraçaria...
Infelizmente, o general terá ficado detido no QG sob boa guarda e o Zé e a Fernanda não podem hoje gabar-se desse alto feito. Não é carcereiro quem quer nem sequer quem merece...
(continuará)