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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

Au bonheur des Dames 366

d'oliveira, 29.06.14

 

Esta gente queima livros...

 

Sou um vulgar leitor de livros ou, pelo menos, isso pretendo ser. Tive a sorte de sempre ter podido comprá-los, editá-los escrevê-los e traduzi-los. E oferecê-los, já agora.

Quando era pequeno, se me davam a escolher um presente, pedia um livro. Mais velho mas adolescente era aí que sumia o pouco dinheiro que tinha. Ou quase: também gostava de cinema e não perdia uma patuscada. Mas os livros, ai os livros, eram a minha bênção: carreguei, primeiro uma mala, depois duas, mais tarde centenas de caixotes de cartão atulhados de livros. Dei muitos e até à data, só vendi livros por conta de uma editora que com mais amigos ajudei a fundar (“Centelha”) e de uma malograda livraria (com mais outros amigos) de que fui sócio (“A erva daninha”)

Se me desfaço de algum livro, ou o dou, ou(sempre com prejuízo meu)  o troco.
Nunca roubei um livro. Nunca. Aqui para nós que ninguém nos ouve, a coisa não obedecia tanto a conceitos morais elevados mas ao abjecto medo de ser apanhado.

Sou um frequentador de livrarias e há cidades que conheço por esse vasto mundo de Deus onde as livrarias são os meus primeiros pontos de referencia. Quando, por ventura, regresso a algum desses sítios que aprendi a amar (Paris, Roma, Veneza, Madrid, Amsterdam, logo me oriento pelas livrarias: a de Amsterdam – se  ainda existe chama-se “Athenaeum” e está perto da Beguinage, do Spui e de uma generosa e animada cervejaria: ah que prazer comprar um livro e seguir para uma bela esplanada e abri-lo já com uma Heineken na mão! Na Figueira da minha longínqua infância era a Havanesa. Chegava e a primeira, notem bem, a primeira paragem era a Havanesa, com a Maria Helena Alves ao balcão, sempre sorridente.

Agora nem a Maria Helena é, nem, tão pouco, a livraria. porra de vida!  Ao longo destes últimos trinta anos fiz o luto de múltiplas livrarias, desde a Atlântida de Coimbra, à Joie de Lire  - e à Librairie du Globe- de Paris. E à Divan, já agora.

Todos os meses passo quatro dias em Lisboa: aí é nos alfarrabistas que me perco e que a minha algibeira se me esvazia.

Ora, tudo isto vem a propósito de um eventual renascimento do espaço da “Sá da Costa”, ao chiado. Desta vez está lá temporariamente instalada a “Castro Silva”, alfarrabista vigorosa (e careira, valha-me Deus!). Talvez lá fiquem definitivamente, disseram-me. Assim seja, repliquei. Antes vocês careirões que mais uma merda muito mais cara para turistas chineses e angolanos.

Na minha primeira visita, deparei-me com uma edição da “Fauna e flora do Brasil no sec XVIII”, um livro que recolhe ilustrações do Landi e que foi amorosamente montado e editado por um grupo de gente brasileira de primeiríssima água. Aquilo está repleto de gravuras admiráveis e, até para nós antigos colonizadores, tem o perfume de uma época em que de cá ia gente de alta valia intelectual para explorar o Brasil, sobretudo o norte. As gravuras de Landi batem-se com as do Dr Alexandre Rodrigues Ferreira, o enorme cientista que durante dez anos explorou mais ou menos as mesmas regiões.

O livro que encontrei estava num estado comatoso: a lombada presa por um fio, sinais evidentes de ter apanhado água, uma boa vintena de folhas manchadas, meia dúzia delas coladas, até. Todavia, com alguém capaz e amador de livros, aquilo restaurava-se e ficava não direi como novo mas com um belo aspecto. Perguntei pelo preço. Não tinha preço. O livro, ao que me informaram,  tinha sido propositadamente estragado com um bom banho nada lustral para, com mais umas pinturecas horrendas, uns sofás paraplégicos cobertos por uns lençóis de duvidosa limpeza, mostrar a potencia criativa de um “artista” plástico vagamente chamado Colaço! Provavelmente, o livro já não estaria impecável mas o banho e as restantes eventuais intervenções infamemente artísticas que sofreu não o melhoraram em nada. Portanto a coisa não era para venda mas apenas para mostrar urbi et orbi o inexistente talento do “criador” de monstruosidades que o adquirira ou herdara.

Não foi a primeira vez que me deparei com semelhante aberração. Já há algum tempo, desta feita no Porto, encontrara uma megera que tentava comprar livros antigos meio “estragados” para a partir daí mostrar de que farinha era feita. Também ela, feia criatura de resto e com ar de pouca amizade pela água e sabão, se intitulava “artista plástica”.

Uns cavalheiros, redentores da humanidade, dos arianos na sua feição mais germânica, também se deram a práticas semelhantes. À falta de autores para aprisionar nos seus campos de concentração, pilharam-lhes os livros para queimar em medonhas e alucinadas manifestações de “deutsche Kultur”. Deus foi servido, posteriormente, ao converter-lhes as cidades e aldeias em idênticas fogueira purificadoras.

Agora vem esta gentinha, aluada pelos filisteus da “cultura” reclamar a sua quota-parte de fama e de falta de senso, vingando-se num livro que apenas ali está para ser lido por alguém com curiosidade. Arre!

 

(post-scriptum: nada disto tem a ver com a historieta imbecil de outro candidato a artista, igualmente plástico” que entendeu pôr uma bandeira portuguesa numa forca. Parece que tal obra era o resultado de um ano de intensa elucubração intelectual de um aluno de uma vaga universidade de província. Por isso algum diligente zelota o terá levado a tribunal acusando a criatura de traição ou desrespeito a símbolo nacional.  Ai Jesus que estão a atacar a liberdade intelectual! Aqui para nós, o que vi em fotografia não merece duas linhas. Nem traição, nem atentado à Bandeira nem nada. Aquilo é apenas uma merda. Uma merda pequenota entre a de gato e a de cão, vá lá a de cavalo deixada ao deus dará num local vagamente público e pouco cheiroso. O que me espanta é o dinheiro que se gasta com o julgamento. E, já agora, com os ordenados dos agentes da autoridade, juristas incluídos que levam ao pretoria aquela ridicularia. Ou melhor: o processo em si, os embaraços do Ministério Público, do Juiz e das restantes autoridades policiais é que, em conjunto, me parecem merecer o título de “obra de arte”. Não nos bastava a selecção, as batalhas do PS, os delíquios de uma direita ultra e banqueira para ainda por cima nos virem com esta bambochata. Que mal fizemos a Deus (e ao diabo)?

 

 Na gravura: uma das muitas ilustrações de "Fauna e flora brasileiras no século XVIII" (a Editora é a Odebrecht uma fundação de obra mais que reconhecida e apreciada

 

 

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