Au bonheur des Dames 366
Esta gente queima livros...
Sou um vulgar leitor de livros ou, pelo menos, isso pretendo ser. Tive a sorte de sempre ter podido comprá-los, editá-los escrevê-los e traduzi-los. E oferecê-los, já agora.
Quando era pequeno, se me davam a escolher um presente, pedia um livro. Mais velho mas adolescente era aí que sumia o pouco dinheiro que tinha. Ou quase: também gostava de cinema e não perdia uma patuscada. Mas os livros, ai os livros, eram a minha bênção: carreguei, primeiro uma mala, depois duas, mais tarde centenas de caixotes de cartão atulhados de livros. Dei muitos e até à data, só vendi livros por conta de uma editora que com mais amigos ajudei a fundar (“Centelha”) e de uma malograda livraria (com mais outros amigos) de que fui sócio (“A erva daninha”)
Se me desfaço de algum livro, ou o dou, ou(sempre com prejuízo meu) o troco.
Nunca roubei um livro. Nunca. Aqui para nós que ninguém nos ouve, a coisa não obedecia tanto a conceitos morais elevados mas ao abjecto medo de ser apanhado.
Sou um frequentador de livrarias e há cidades que conheço por esse vasto mundo de Deus onde as livrarias são os meus primeiros pontos de referencia. Quando, por ventura, regresso a algum desses sítios que aprendi a amar (Paris, Roma, Veneza, Madrid, Amsterdam, logo me oriento pelas livrarias: a de Amsterdam – se ainda existe chama-se “Athenaeum” e está perto da Beguinage, do Spui e de uma generosa e animada cervejaria: ah que prazer comprar um livro e seguir para uma bela esplanada e abri-lo já com uma Heineken na mão! Na Figueira da minha longínqua infância era a Havanesa. Chegava e a primeira, notem bem, a primeira paragem era a Havanesa, com a Maria Helena Alves ao balcão, sempre sorridente.
Agora nem a Maria Helena é, nem, tão pouco, a livraria. porra de vida! Ao longo destes últimos trinta anos fiz o luto de múltiplas livrarias, desde a Atlântida de Coimbra, à Joie de Lire - e à Librairie du Globe- de Paris. E à Divan, já agora.
Todos os meses passo quatro dias em Lisboa: aí é nos alfarrabistas que me perco e que a minha algibeira se me esvazia.
Ora, tudo isto vem a propósito de um eventual renascimento do espaço da “Sá da Costa”, ao chiado. Desta vez está lá temporariamente instalada a “Castro Silva”, alfarrabista vigorosa (e careira, valha-me Deus!). Talvez lá fiquem definitivamente, disseram-me. Assim seja, repliquei. Antes vocês careirões que mais uma merda muito mais cara para turistas chineses e angolanos.
Na minha primeira visita, deparei-me com uma edição da “Fauna e flora do Brasil no sec XVIII”, um livro que recolhe ilustrações do Landi e que foi amorosamente montado e editado por um grupo de gente brasileira de primeiríssima água. Aquilo está repleto de gravuras admiráveis e, até para nós antigos colonizadores, tem o perfume de uma época em que de cá ia gente de alta valia intelectual para explorar o Brasil, sobretudo o norte. As gravuras de Landi batem-se com as do Dr Alexandre Rodrigues Ferreira, o enorme cientista que durante dez anos explorou mais ou menos as mesmas regiões.
O livro que encontrei estava num estado comatoso: a lombada presa por um fio, sinais evidentes de ter apanhado água, uma boa vintena de folhas manchadas, meia dúzia delas coladas, até. Todavia, com alguém capaz e amador de livros, aquilo restaurava-se e ficava não direi como novo mas com um belo aspecto. Perguntei pelo preço. Não tinha preço. O livro, ao que me informaram, tinha sido propositadamente estragado com um bom banho nada lustral para, com mais umas pinturecas horrendas, uns sofás paraplégicos cobertos por uns lençóis de duvidosa limpeza, mostrar a potencia criativa de um “artista” plástico vagamente chamado Colaço! Provavelmente, o livro já não estaria impecável mas o banho e as restantes eventuais intervenções infamemente artísticas que sofreu não o melhoraram em nada. Portanto a coisa não era para venda mas apenas para mostrar urbi et orbi o inexistente talento do “criador” de monstruosidades que o adquirira ou herdara.
Não foi a primeira vez que me deparei com semelhante aberração. Já há algum tempo, desta feita no Porto, encontrara uma megera que tentava comprar livros antigos meio “estragados” para a partir daí mostrar de que farinha era feita. Também ela, feia criatura de resto e com ar de pouca amizade pela água e sabão, se intitulava “artista plástica”.
Uns cavalheiros, redentores da humanidade, dos arianos na sua feição mais germânica, também se deram a práticas semelhantes. À falta de autores para aprisionar nos seus campos de concentração, pilharam-lhes os livros para queimar em medonhas e alucinadas manifestações de “deutsche Kultur”. Deus foi servido, posteriormente, ao converter-lhes as cidades e aldeias em idênticas fogueira purificadoras.
Agora vem esta gentinha, aluada pelos filisteus da “cultura” reclamar a sua quota-parte de fama e de falta de senso, vingando-se num livro que apenas ali está para ser lido por alguém com curiosidade. Arre!
(post-scriptum: nada disto tem a ver com a historieta imbecil de outro candidato a artista, igualmente plástico” que entendeu pôr uma bandeira portuguesa numa forca. Parece que tal obra era o resultado de um ano de intensa elucubração intelectual de um aluno de uma vaga universidade de província. Por isso algum diligente zelota o terá levado a tribunal acusando a criatura de traição ou desrespeito a símbolo nacional. Ai Jesus que estão a atacar a liberdade intelectual! Aqui para nós, o que vi em fotografia não merece duas linhas. Nem traição, nem atentado à Bandeira nem nada. Aquilo é apenas uma merda. Uma merda pequenota entre a de gato e a de cão, vá lá a de cavalo deixada ao deus dará num local vagamente público e pouco cheiroso. O que me espanta é o dinheiro que se gasta com o julgamento. E, já agora, com os ordenados dos agentes da autoridade, juristas incluídos que levam ao pretoria aquela ridicularia. Ou melhor: o processo em si, os embaraços do Ministério Público, do Juiz e das restantes autoridades policiais é que, em conjunto, me parecem merecer o título de “obra de arte”. Não nos bastava a selecção, as batalhas do PS, os delíquios de uma direita ultra e banqueira para ainda por cima nos virem com esta bambochata. Que mal fizemos a Deus (e ao diabo)?
Na gravura: uma das muitas ilustrações de "Fauna e flora brasileiras no século XVIII" (a Editora é a Odebrecht uma fundação de obra mais que reconhecida e apreciada