au bonheur des dames 409
O escândalo dos bem pensantes
Um cavalheiro de que só sei o nome e, vagamente, a profissão, entendeu casar-se em Serralves. Para isso dispôs-se a pagar cem mil euros pelo uso da casa principal e dos jardins a ela afectados.
Parece que a criatura já era casada pelo civil mas, agora, resolveu pedir a bênção à Igreja. É bonito e raro. Esta gente, quando começa a encher a algibeira, costuma trocar de mulher. Uma mais nova, mais curvilínea, mais de encher o olho.
Celebremos, pois, a rara virtude da fidelidade conjugal mesmo se a exposição dela em Serralves seja grandiloquente e muito à novo rico.
(os novos ricos distinguem-se dos velhos ricos por serem não a terceira ou seguintes gerações de gente com dinheiro mas tão só a primeira. No resto são iguais mesmo se os modos possam ser um pouco toscos e ainda não saibam usar bem os talheres, sobretudo os mais difíceis, por exemplo o que se usa para os “escargots Boulogne”).
Todavia, uma boa parte da população tripeira, mormente aquilo que se chama pequena e média burguesia, acharam descabido, ofensivo até, o uso de um casa em que raramente põem os pés mimosos, se é que alguma vez se atreveram a enfrentar as exposições que por lá fazem.
Eu bem que tento explicar que cem mil euros é um bocado de massa e que na penúria tristonha dos nossos museus aquilo dá para para uns brilharetes além de que considero não só que pagar para usar é uma feliz e inócua substituição do slogan “os ricos que paguem a crise “ tão ao gosto da senhora Catarina Martins e dos seus amigos, ou inimigos, do Livre, do PC e até do PS.
Que um ricaço se queira mostrar de corpo inteiro a espojar-se na sua fortuna, pouco se me dá. Se ele quer casar-se em Serralves, Queluz ou num hotel de cinco estrelas é-me indiferente. Ou melhor: se ele paga forte e feio pela tola exibição agrada-me. E faz-me sorrir. Por mim, os monumentos nacionais até teriam a ganhar se o exemplo frutificasse. Era dinheiro que não sairia dos cofres dos contribuintes (nos quais modestamente me incluo) que dia sim, dia não, pagam a cultua pífia que um exagerado grupo de “artistas” indígenas nos servem. Até proporia um preçário se me deixassem legislar sobre tão ingrata matéria. Casamento nos Jerónimos (uma hora chega) 20.000 euros. Copo de água nos claustros? 10.000 euros por hora e pagamento das limpezas. E por aí fora.
Eu ainda pensei que a indignação invejosa e citadina tivesse a ver com o receio de que os festejantes mailas centenas de convidados defecassem nas alamedas, pastassem nos canteiros, mijassem para fora da sanita ou jovialmente se alvejassem com nacos de lagosta que obviamente poderiam sujar as paredes ou os cortinados.
Agora o simples e (espera-se sem absoluta convicção) civilizado uso das instalações mediante gorda remuneração não me parece condenável. Nem ofensivo do bom gosto. Ou da cultura com C grande ou pequeno. Vê-se disso nos palazzi de Veneza todos os dias. Já vi grandes museus fechados ao público para um “mecenas” poder mostrar aos seus convidados, apaniguados, criados ou associados, a eventual arte exposta, o seu poder ou o seu dinheiro.
Para não ir mais longe: o Metropolitan de Nova Iorque está cheio de salas com os nomes de benfeitores que, em vida, mais não foram do que empresários enriquecidos com maior ou menor dose escrúpulos. Serralves tem, ela própria, uma parede cheia de nomes de criaturas que ofereceram em nome das suas empresas umas quantias (que tiveram algum resultado em desconto de pagamento de impostos) e cujo amor às artes e às belas letras é sobejamente (des)conhecido. Muita dessa ilustre comandita paga também imensas somas aos clubes de futebol para publicidade sua. Ou seja, paga a uma boa parte dos convidados desta festa que todos devíamos celebrar com um sorriso nos lábios tão raras são as possibilidades de nos podermos divertir com as vaidades alheias.
Senhoras e senhores de fortuna! Por favor façam as vossas festas nos monumentos que por aí caem de podre. E paguem. Paguem forte e feio! Antes isso do que sermos nós, os paisanas, o vulgo, os pata ao léu, a termos de pagar o restauro dos castelos e igrejas, a pífia qualidade do teatro que se faz e a pobre produção cinematográfica que corre desolada por salas vazias de espectadores.
Queridos ricos, paguem a crise!
* na gravura: "casamento" (Kasimir Malevitch)