Au bonheur des dames 412
E de novo a tropa
Parece que o senhor general chefe do Estado Maior do Exército declarou perante os senhores deputados que o roubo de armas em Tancos o tinha “humilhado profundamente”
Se não usou o profundamente, serviu-se de um advérbio com a mesma intenção e intensidade, porém o “humilhado” esse é certo.
Eu percebo os estados de alma do senhor Chefe de Estado Maior do Exército. Um oficial general não pode ser humilhado seja em que circunstância for. Ou não deve. Ou não se concebe. Não se chega a general sem mais nem menos mesmo se, para marechal, baste uma vaga, uma boa vontade, um bastão disponível e um Governo bem intencionado.
Um general fez toda a carreira, Altos Estudos (era assim que aquilo se chamava e, mesmo assim, se eram muitos os chamados acabavam por ser poucos os escolhidos). Um general é suposto ser pessoa grave, marcial, claro, e competente. E responsável, cela va de soi... Quando um senhor general assume a Chefia do Estado Maior então a coisa refina.
Portanto, temos um general coalhado de medalhas que se sente “humilhado”. Quando isso acontece é sempre imensamente humilhado. Um general não é humilhado como um capitão, um sargento ou um “soldado pronto”. Há nisto, nesta grandeur et servitude” dos militares, uma escala quanto mais não seja hierárquica.
Mais: quando um general é humilhado, todos os seus subordinados também o são. Pelo menos os do corpo de oficiais (do quadro, claro está, que os milicianos para isto contam pouco). A minha tese é que a humilhação, o grau de humilhação, é proporcionalmente inversa à hierarquia. Um general é humilhado, um coronel é bastante humilhado, um tenente coronel ainda mais, um major é muito humilhado e um capitão entra no domínio da imensa humilhação. Tenentes e alferes nem se concebe. Deve ser pavoroso!
Donde ninguém de bom senso e com verdadeiro sentido de dever e patriotismo q.b., se pode admirar que a humilhação de Sª Exª o CEME, se transmita para baixo num rio impetuoso, numa enxurrada, que digo?, num tsunami. Daí cinco (5) coronéis todos comandantes de unidades deverem, em obediência às leis não escritas da tropa, ser também eles humilhados. E para que se perceba bem a diferença de grau que vai do “meu general” ao “nosso coronel” (de um lado uma barra larga e três estreitas, do outro uma ou várias estrelas de cinco pontas) essa humilhação tem de ser redonda e notoriamente visível. Foi por isso, e só por isso, que os cinco cavalheiros foram provisoriamente exonerados das suas funções de comando. Não sei bem o que quer significar esta exoneração provisória mesmo que suspeite que ela deite por terra as espectativas desses oficiais ao generalato.
Perguntar-se-á, agora, o que sucede com o senhor Ministro da Defesa Nacional. A pergunta é pertinente e a resposta pode parecer impertinente: Nada!
O senhor Ministro é um civil, provavelmente um paisano, pois eventualmente não terá feito o serviço militar obrigatório. A carreira académica que propicia adiamentos pode tê-lo dispensado dessa maçada tanto mais que nascido em 61 já chegou à idade de “mancebo” numa época em que a tropa já não era uma fatalidade e, sobretudo, a balbúrdia post-revolucionária tinha tornado a chamada às fileiras um tanto ou quanto vaga.
Mas, ponhamos que sim, que o senhor Ministro foi às sortes, que foi apurado, “apto para todo o serviço”, que frequentou Mafra ou algo parecido, que, inclusivamente, foi aspirante miliciano e depois cumpriu serviço num qualquer risonho quartel do “torrãozinho de açúcar”. E que, passados uns meses de bela vida, “passou à peluda”, despiu a farda e foi dar as suas pacíficas aulas na universidade. Tudo nisto indica que a excelente criatura nunca passou de um paisano fardado, ou seja de alguém que, em tempos de guerra é carne para canhão e nos de paz uma chatice a mais.
O doutor Azeredo Lopes teve o azar de ser convidado, vá lá saber-se porquê, para Ministro. A prudência aconselharia que não aceitasse mas, desde tempos imemoriais, os professores de Direito adoram ser ministros como se sabe. À cautela poderia ter aceitado a Justiça ou uma daquelas pastas vagamente ligadas à Educação. Mas a Defesa Nacional? Francamente! Por muito Abril que se celebre, mesmo os mais excitados detestam a ideia do que se gasta um dinheirão em armamento. E em instalações militares por muito que estas sejam, tantas vezes obsoletas e desconfortáveis. A lembrança pungente das “máfricas” dos anos sessenta e setenta, a terrível experiência das matas africanas em três frentes, de quando em quando traiçoeiras mas sempre atemorizantes, reduziu a tropa a algo que a sociedade esconde com algum pudor, um toque de vergonha e muita indignação pela despesa. Os militares de carreira perderam estatuto, caíram no poço sem fundo e sem glória da pequena burguesia empobrecida. As espadas já não encantam as meninas casadoiras que preferem um licenciado em gestão, algum informático, um quadro bancário. Por outro lado, o prodigioso desenvolvimento do armamento obrigou as Forças Armadas a uma crescente profissionalização e ainda maior especialização. O Serviço Militar Obrigatório caiu em desuso por caro e ineficaz. Os oficiais perderam aí grande parte do prestígio que lhes advinha do enquadramento de dezenas de milhares de “mancebos” que iam à tropa aprender a ordem unida e o manejo de algumas armas pouco sofisticadas. Hoje ninguém usa Mausers, sequer Kalachnikovs e formar um condutor de tanque exige muito ourelo, muito estudo que não se entrega a um tarata mais civil que um edital camarário uma máquina que custa milhões. A Marinha e ainda mais a Força Aérea exigem conhecimentos, treino e estudo que se não compadecem com os escassos meses da instrucção básica. Estes ramos das FA exigem especialistas poucos mas eficazes e não a tropa fandanga que anualmente acorria aos quartéis. A tropa tornou-se mais e mais um corpo fechado, misterioso que nada tem a ver com a velha ideia da “Nação em armas” de tradição jacobina que já só entusiasma o PC et pour cause...
Está, assim explicada a origem da indignação do CEME. Porém, não se entende sem mais a obscura razão que atira sobre cinco coronéis a responsabilidade do escândalo dos paióis violados. Pode ser que estes cinco comandantes de unidade (de unidades mais ou menos de elite...) tenham algo a ver com a desorganização das rondas e sentinelas. Não menos verdade é que anteriormente a guarda esteve entregue a uma companhia, depois a um pelotão e acabou em 11 criaturas. Como não chegavam ter-se-á elucubrado um esquema rotativo para o qual havia, de todo o modo, falhas de pessoal. Tudo isto, deixemo-nos de brincadeiras, era do conhecimento de toda a gente, CEME e Ministro incluídos. Daí falar-se em “responsabilidade política”, que é algo que parece escapar ao Ministro e ao Governo. E, provavelmente, ao CEME.
Todavia, essa responsabilidade não escapou ao oficialato e os murmúrios castrenses ouvem-se com crescente nitidez ao ponto de dois generais, e dos importantes, já terem manifestado o seu mal estar e a sua polida revolta. Por muito que se apelide a tropa de “grande muda”, a verdade é que, à falta de tinir das espadas, ouve-se o rumor da indignação. E da camaradagem, outro valor apreciado pelos homens de armas. E da solidariedade, idem.
Fica-se com a ideia de que o CEME está arredado desse mundo e que o Ministro nem sequer ouviu falar dele. Para quem quer mandar na Defesa Nacional e deixar a sua marca, o ar bisonho com que o Ministro passeia a sua inocência, a sua fuga à responsabilidade ultrapassa os limites do decoro e da ética política.
Um comentador televisivo afirmava-se envergonhado por causa do roubo. Modestamente, envergonha-me mais a atitude das pessoas com responsabilidades. E nisso vai o CEME, o Ministro, o Governo e mesmo, desculpem lá, o alegado Comandante Supremo das Forças Armadas cujo piedoso voto de investigar tudo não faz desaparecer o modo como se está a tentar conter o escândalo varrendo para debaixo do tapete.
Ontem, o CEMGFA, terá afirmado que a tropa apanhou “um soco na barriga mas que depois se levantou”. Também não faltava mais nada. Então iam ficar espojados por terra, a morder o pó? Francamente!
Acrescentou ainda o CEMGFA mais duas pérolas de altíssima sabedoria. A saber: que os lança granadas surripiados de pouco devem servir visto estarem para ser abatidos. E que o valor do roubo fora apenas de 34.000 euros. Uma ninharia. Por outras palavras cada um dos coronéis provisoriamente exonerado vale 6.700 euros. Deve ser por isso que a exoneração é provisória. Para ser definitiva deve, ser necessário que ultrapasse os 10.000 euros por cabeça...
Ditosa pátria... ditosa pátria...