Au bonheur des dames 412
13 anos depois!
mcr 10.10.19
Mais precisamente, 13 anos, cinco meses menos um dia. Eu explico. Em 11 de Maio de 2006, neste espaço livre chamado “incursões” escrevi na edição 24 de “estes dias que passam”, umas linhas sobre uma sacanice mesquinha perpetrada pela “Comédie Française”. De facto, uma peça de Peter Handke que estava a ser preparada para levar à cena foi desprogramada pela direcção do teatro (um teatro nacional, note-se) porque o autor tinha estado presente no funeral de Milosevic, um antigo chefe de Estado da Sérvia e valente filho da puta.
Eu sempre entendi que uma coisa é a obra (literária, pictórica ou musical, etc) e outra é alguma eventual posição política, moral do respectivo autor. Caravaggio não era companhia recomendável, como também o não era Villon ou, neste século, Céline ou Pound. Todavia eram, são, serão exemplos ímpares de grandes criadores e a sua memória persistirá muito mais tempo do que os politicamente correctos que apontam o dedinho inquisidor e denunciam as ideias, os costumes, as atitudes ou ate o pensamento de um qualquer outro indivíduo.
E, sobretudo, sou contra qualquer espécie de censura artística que em vez de criticar o objeto critica o autor ou outras circunstâncias mais ou menos conexas.
Handke, dizia eu (e quem quiser pode ir até ao dia e data anunciados (11.5.2006, pag 11) e ler o que então entendi escrever.
Lembro-me, como se fosse hoje, que terei pensado que Handke nunca receberia o “Nobel” justamente porque a bem-pensância o identificaria com um tiranete. Por muito menos Borges, o admirável Jorge Luís Borges, foi proscrito das listas dos nobelizáveis. Borges, dizia-se, era a favor dos generais argentinos. Por junto, o escritor congratulara-se com a queda dos peronistas (aliás tão corruptos e tão anti-democráticos como os militares mesmo se matassem infinitamente menos), Isso bastara para o confundirem com os meliantes militares argentinos. Convirá notar que alguns dos que criticavam as Juntas militares babavam-se de admiração perante Fidel de Castro, os coreanos e outro autênticos democratas progressistas que “reeducavam” os opositores nos gulags do costume...
Afinal, treze longos anos depois, eis que o Nobel lhe cai no regaço. Valeu a pena não ter morrido, ao fim e ao cabo, Handke é da minha idade, uns meses mais novo e já poderia estar num pacífico cemitério a fazer tijolo. Mas o homem é resistente e a nova composição da Academia sueca lá terá entendido que não pode estar sempre a descobrir talentos desconhecidos de quase toda a gente.
Este prémio é merecidíssimo, Handke é um escritor notabilíssimo, tem inclusive alguns livros traduzidos em português (devem estar esgotados mas seguramente podem encontrar-se nos alfarrabistas) e, por outro lado, este gesto dos suecos é um bofetão de luva branca na gentinha da “Comédie...”
Aliás, provavelmente já nem sequer por lá andam os censores de 2006 que a lei da vida (e da morte) também se aplica em Paris.
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um breve parágrafo para lembrar que Chico Buarque é o “prémio Camões ” deste ano. Prémio justo sobretudo se lembrarmos o autor de uns centos de canções de alta qualidade poética. Conheço pior os romances mas os textos das canções que me vem acompanhando há mais de quarenta anos bastam pra felicitar o júri.
Parece que o sr. Bolsonaro, cujas qualidades intelectuais são assaz conhecida,s está “aborrecido”. Chico não é criatura da sua privança (como alguém, um duque, parece-me, terá dito a Franco “es que hay clases...”) e terá amigos duvidosos. Mais uma vez aqui se lembra que ser amigo de Lula não estraga a qualidade do poema “Construção” e que a falta de assinatura de Bolsonaro no documento que concede o prémio torna este muito mais valioso. Há assinaturas que destroem uma reputação ou uma declaração.
Resta saber se Bolsonaro sabe escrever o seu nome todo e não se engana nalgumas letras...
Força, capitão Bolsonaro, não assine, por favor, não assine...
* na ilustação: a extraordinária "Descida da Cruz" do enorme Caravaggio