Au bonheur des dames 415
Zé Rodrigues
(páginas de um catálogo)
1
Há séculos que a filha de Herodíade dança. Não por ela, muito menos por nós, mas tão somente para obter por prémio a cabeça daquele que a si próprio se chamou a voz que clama no deserto.
Véu a véu sela-se, fatal, a sorte do Baptista que fustiga pecados, anuncia a vinda de um outro a quem, é ele que o afirma, nem sequer merece apertar a correia da sandália.
Verão os seus olhos "como carbúnculos" a sorte funesta que a dança de Salomé lhe promete? Não é João, como dizem todos, do Tiberíades até ao Jordão, um profeta? Ou, por saber do futuro dos outros está-lhe negado conhecer o seu?
2
Poetas, músicos e pintores repetem, desde há séculos, esta história; encenam a morte de João, a cabeça decepada, a nudez perversa de Salomé, a cobardia do Tetrarca e a vingativa determinação da adúltera Herodiade.
Dir-se-ia que, graças à mestria deles, João ressuscita constantemente apenas par outra e outra vez, perder a cabeça e a vida.
A dança da virgem e a morte de João confundem-se a tal ponto que já não sabemos se esta não é mais do que a neccessária consequência da outra, como se a História apenas fosse um capricho de um Deus sarcástico e indiferente.
3
Da mão do Zé Rodrigues solta-se uma outra estória, porventura menos trágica mas singularmente mais próxima:
O olhar do Baptista continua penetrante mas, agora, há nele também o eco de um desejo, a misericórdia do perdão.
Salomé é apenas uma adolescente cuja sensualidade ingénua é temperada pela graça de um corpo humanamente imperfeito e a dança não pede a morte mas a vida, pede o corpo todo do visionário, oferece ao profeta, não o amor que ela ainda não conhece mas um momento de descanso, de refrigério para quem se consumiu em todos os desertos da Galileia.
4
Contra a dança da morte, a mão do escultor criou o toque da vida. Não é por acaso que ele vive e trabalha neste Porto em que o profeta é festejado numa noite imortal como protector de amores, de namorados, de vida vivida ou, pelo menos, sonhada.
Marcelo Correia Ribeiro
(Porto 3 de Novembro de 1977)
Em 1997, o José Rodrigues aceitou o meu convite para se expor nas instalações do Centro Regional de Segurança Social do Porto, na sequência de outros eventos do mesmo teor em anos anteriores e para os quais também contribuí com textos para os respectivos catálogos.
É o caso desta prosa acima republicada
Foi uma prova de generosidade e de amizade que vinha na sequência de outras e que marcava uma bela amizade de muitos anos.
Agora morre-nos, assim, no fim do Verão mesmo se o seu estado não augurasse nada de bom nestes últimos tempos.
Noutro país menos ignorante, noutra cidade menos esquecida, o Zé teria feito uma carreira internacional e hoje a sua morte viria em todos os noticiários. Por cá nem a televisão se incomodou...
* vai este folhetim para Alfredo Vieira e Manuel Sousa Pereira, dois amigos leais, fieis do Zé que estiveram com ele sempre, até hoje. Um abraço para ambos.