Au bonheur des dames 419
Maria Cabral
Eu não sei se foi antes ou depois de aparecer em “O cerco”, filme que a atirou para o primeiro lugar absoluto das actrizes portuguesas e, particularmente, do cinema novo. Todavia, há uma teimosa memória dela, anos antes. Vista ou mais precisamente entrevista nos anos de brasa sequentes à crise de 62, terei ficado fascinado pela sua beleza, pela graça que dela dimanava e que iluminava quem inocentemente a contemplasse.
Não, não era uma paixão (oh quem dera!) de jovem rapaz a desbravar a universidade, os livros novos, a política, o cinema e o jazz. Apaixonado andava já eu, e com fortes razões, por uma mulher de que, cinquenta anos depois, todos me falam com carinho e admiração. Chegava e sobrava para me tirar o sono, que o estado de enamoramento dá a volta à cabeça (e mais órgãos) de qualquer um. Não: a Maria Cabral era, na esconsa realidade portuguesa, no meio do beatério que se nos se impunha, uma aparição de liberdade, de outra eventual e possível realidade, de uma juventude alternativa que procurávamos (sem o conseguir, pelo menos plenamente) viver.
Nunca tive inveja de ninguém mas abro uma excepção para o Vasco Pulido Valente que escreve como um enciclopedista libertino e curioso e, ainda por cima, era ou fora casado com ela. Raios partam o homem a quem tudo sorriu, incluindo a fabulosa equipa da revista “almanaque” que o acolheu e reconheceu teria ele escassos dezasseis anos! Arre!
Leio nos jornais que Maria Cabral morreu longe, no país que escolheu e a que se acolheu. Diz quem sabe que vivia cercada de livros, de música numa paz budista entre montanhas e campos pacíficos.
Agora, morrem-me constantemente amigos e conhecidos. A idade vai-me reduzindo à crescente solidão, também no meio de livros, alguma pintura e muita música. A sobrevivência aprende-se mesmo se, por vezes, parece (e é) intolerável. Vejo-me envelhecer bem mais tolerante do que alguma vez imaginei, bem mais descrente do que alguma vez jurei ser, muito mais desiludido com as partidas que a História me vai pregando (agora o Trump, Jesus, Maria José!). Não me doem o cabelo branco, o andar mais devagar, as picadelas diárias para verificar a glicose, ou o frio que sinto com mais intensidade (e o calor do Verão, idem...). Aquilo a que me não resigno é a esta partida sucessiva de amigos e, sobretudo, à imparável entrada em cena do xico-espertismo político, do oportunismo berrante, da absoluta falta de ideologia naquilo que é ou foi o meu campo político. No meio desse pântano obscuro havia breves ilhas onde o Luís Monteiro ou a Maria Cabral resplandeciam e resistiam. Agora nem isso. Não desjo a morte mas confesso que já a não temo. Que quando vier seja rápida como fulgor de uma faca é tudo o que peço. E quem cá ficar que atire o meu imprestável corpo ao mar se isso (coisa muito mais fácil do que a eutanásia) ao mar, o meu horizonte inicial e a minha última sagrada verdade.
Amén!
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Também, por estes miseráveis dias, morreu José Vicente, livreiro alfarrabista. Conhecia-o há anos e era cliente assíduo e amigo grato. José Vicentehonrva a profissão e era sem qualquer favor um dos grandes alfarrabistas portugueses. Comprei-lhe muito livro e fui um dos licitantes mais fieis e constantes dos seus excelentes leilões. aconselhou-me muitas vezes, informou-me muitas mais e recebia-me mensalmente (quase sempre numa das últimas quartas feiras do mês) com um sorriso e duas palavras amigas. Acompahei a sua luta para manter a "Olisipo" naquele belo sítio, festejámos a sua vitória e esperei sempre que seria ele a lamentar a minha futura ausencia, tanto mais que era mais nov. Não foi assim. Resta-me esperar que o seu filho e restante família consigam manter a livraria e o rigor que José Vicente sempre demonstrou. Vai fazer muita falta a clientes e amigos que aliás eram quase sempre os mesmos.