au bonheur des dames 421
À atenção de alguns comentadores “distraídos”, muito distraídos.
Comecemos pelo óbvio. O senhor Macron ganhou a 1ª volta das presidenciais francesas. Teve 24, 1% contra 21,3 da senhora Le Pen.
Até aqui pouca novidade. Tratava-se de uma vitória anunciada. Além de tudo o mais, Macron já levava na bagagem importantes apoios de conservadores e de socialistas. A senhora Le Pen vê a sua margem crescer de 17, 9% há cinco anos para os actuais quase 21,3%. Conviria verificar se no meio deste crescimento não vão alguns votos fugidos ao senhor Fillon, candidato “gaulista”. De todo o modo, é uma meia vitória com sabor amargo
O Dr Pacheco Pereira, num artigo demasiado apressado, publicado no dia 24, fala em “pesada derrota” dos gaulistas e dos socialistas. Não se percebe como é que mete no mesmo saco dois resultados tão abissalmente diferentes. Fillon, apesar de ter esbanjado a sua candidatura por via dos empregos fictícios da mulher e filhos, ainda conseguiu mais de 20%. Se compararmos a sua votação com a de Sarkozy na última eleição (27%) temos que vê fugirem-lhe cerca de 7% do total de eleitores. Já o surpreendente candidato socialista dá um trambolhão de 28,6 (Hollande em 2012) para pouco mais de 6%. É obra. Aqui, sim, há uma pesadíssima derrota. Mesmo que se saiba que muitos dos votos socialistas fugiram, por raiva, desespero ou o que quer que seja para o senhor Melenchon de que já se falará.
A derrota (importante) de Fillon) não compromete demasiadamente “Os Republicanos” enquanto que no Partido Socialista está tudo para reconstruir. E está porque a escolha de Hamon foi, ela própria, um desastre de todo o tamanho. Hamon nunca passou de uma figura apagada, desconhecida do grande público na melhor hipóteses e antipática para os que o viram combater (não vou dizer trair) Hollande depois de ter aceitado ser ministro...
Hamon nunca foi dado como candidato com hipóteses mas o fiasco é estrondoso. Deixou de existir politicamente. No PS e na França.
Vejamos o caso Melenchon, um tonitruante ex-socialista, criatura arrebatada que desde há muito vive de slogans grandiloquentes e de um cachecol vermelho que deve ser a única coisa eventualmente revolucionaria com que se adorna. Teve o dobro dos votos da eleição presidencial anterior. Como suspeito, muitos, quase todos, virão de eleitores socialistas que, muito justamente, não se reviam na inconsistente figura de Hamon. De todo o modo, Melenchon é, no conturbado panorama político francês, um exemplo de tudo o que é antiquado, falso, desvairado, na esquerda francesa. O homenzinho apresenta-se, actualmente, como alguém que se inspira nos populistas latino-americanos nomeadamente Chavez (e o seu discípulo dilecto Maduro) e Correia. Chavez, ex-golpista inventou uma coisa chamada bolivarianismo que é uma espécie de cocktail demagógico do pior da tradição sul americana. Conseguiu colocar a Venezuela ao bordo do precipício donde o seu alucinado sucessor se prepara para o grande salto para baixo.
A Venezuela é hoje um país absolutamente falido, onde a maioria popular votou um parlamento anti Maduro, onde um submisso Supremo Tribunal nomeado pelo Presidente tentou desqualificar a representação popular, onde um exército visceralmente dependente do poder mata com a ajuda de milícias civis os manifestantes desarmados. Não se passa dia sem mortos por bandos de motoqueiros mascarados, sem pessoas gaseadas pela polícia do regime, sem condenações à perda de direitos políticos, sem continuada e persistente prisão de opositores, sem pão nas padarias, sem medicamentos nas farmácias. Onde tudo falta já só sobra a raiva.
É deste desacreditado regime que Cuba cada vez mais tenta afastar-se que Melenchon se reclama. As suas hostes intitulam-se les insoumis, la France insoumise, enfim uma patetada que nada significa e que, sobretudo, de insubmisso nada ou pouco tem. Trata-se como no campo de Le Pen, de um aglomerado de criaturas órfãs do velho PCF, de uma pequena burguesia citadina e rabugenta que odeia a Europa, a mundialização, que não percebe o seu declínio enquanto classe e enquanto federação de privilégios ameaçados. A única diferença que há entre estes “insoumis”e as gentes lepenistas é que aqui subsistem os restos de um velho proletariado francês e comunista que viu as suas regiões industriais morrerem. É apenas ir consultar os velhos mapas eleitorais relativos aos anos 60, 70 e 80 do último século. Algo, todavia as aproxima: Le Pen é abertamente xenófoba enquanto Melenchon o é disfarçadamente. A sua recusa da Europa e da mundializaçãoo é isso mesmo: la France d’abord. Mesmo se essa França “gloriosa” (algo que enche a boquinha mimosa de boa parte da inteligentsia melenchonista) seja tão só saudades de um passado morto e enterrado
Quanto a caceteiros são iguais. Ainda em pleno dia eleitoral, em Paris, pequenas mas bem organizadas hordas “insubmissas” começaram a manifestar-se violentamente logo que os primeiros resultados apontavam para o 4º lugar do seu caudilho.
Pouco depois, nos diferentes debates televisivos transmitidos pelas televisões francesas, viu-se a componente política dos jovens energúmenos. Interrogados sobre quem apoiariam na 2ª Volta, os porta-vozes de Mélenchon rematavam para canto, harangavam sobre a subida do seu candidato, acusavam Macron (muito mais que Le Pen sobre quem quase nada diziam). Nessa altura já Fillon e Hamon apelavam ao voto em Macron.
Para esta duvidosa caricatura do “maduro-bolivarianismo” avec sauce française, além dela tudo é igual e mau. A velha e gloriosa “Internationalle” conta nos seus versos este: “du passé faisons table rase”. Na langue de bois dos melenchonistas já não se trata do passado mas sim do presente. Como quem diz: morra Sansão e quantos aqui estão. No caso em apreço, parece que esta gente prefere um quinquénio Marine Le Pen que, depois, milagrosamente, provocaria um sobressalto cívico e “revolucionário” (!!!) que inauguraria finalmente “os amanhãs que cantam” sob o consulado de Melenchon que, à falta de barrete frígio, sempre tem um cachecol vermelho.
Por cá, vê-se, com parca ou nula surpresa, a mesma atitude. BE e PCP, jurando sempre pelo mais exaltado anti-fascismo, já enterraram Macron debaixo de toda uma série de acusações, as mais das vezes pouco credíveis. O que os arrelia é a atitude pro-Europa do candidato francês. Comunistas e bloquistas são visceralmente contra o “cosmopolitismo”. Os primeiros sempre foram, convém salientar. Nos bons tempos do stalinismo puro e duro a acusação de “cosmopolitismo” era das mais graves. Na URSS e satélites levava ao gulag ou a destinos definitivos e piores. Nos partidos comunistas do Ocidente era quanto bastava para excluir militantes.
Para estas criaturas o “internacionalismo” (que já nem é “proletário”...) traz um perfume perigoso de livre troca de ideias, de liberdade de apreciação e de comparação que é, como se sabe, um preventivo para as ideias feitas e para o autismo político. Uma França activamente pro-europeia estraga os vagos projectos desta esquerda desacreditada ideológica e socialmente. No caso do PC nem sequer a memória desse velho bolchevique que se chamou Álvaro Cunhal parece ser apreciada. Todavia, foi ele, que no confronto Soares Freitas do Amaral (que na altura era acusado de tudo) mandou (repito: mandou) votar no primeiro mesmo que isso significasse engolir um elefante. Quanto ao BE, é o costume: um ligeiro toque de “radicalismo pequeno burguês” (variante benigna da “doença infantil” denunciada por Lenin) e um tom de ambiguidade que servirá para, oportunamente (ou oportunisticamente) salvar a face e deixar cair a senhora Le Pen, aliada táctica e estratégica.
* A ilustração reproduz a capa de um famoso texto do senhor Marquês de Sade, escritor que seguramente não diz nada aos cavalheiros leitores do PC e do BE. Ainda bem!...