au bonheur des dames 421
A metade do céu?
Talvez mais...
mcr, 8 de Outubro 2020
Mao Ze Dong que, no meu tempo de descuidosa juventude, ainda se chamava Mao Tse Tung terá dito alguma vez que “as mulheres são metade do céu”. Se o disse ou não é irrelevante, tanto mais que ele nunca se mostrou particularmente favorável à gens feminina, o que, aliás, está dentro da tradição comunista (basta ver o lugar reservado às mulheres no que toca à acção política ou ao desempenho de cargos. Das soviéticas Clara Zetkin ou Inessa Armand escasseiam provas que tivessem – como prometiam – sido decisivas. A alemã Rosa Luxemburgo morreu cedo ainda que deixando uma obra teórica de fôlego mas repudiada pela “inteligentsia” oficial do Komintern. Restaria Dolores Ibarruri, “la Pasionaria”, emblema da revolução espanhola e stalinista convicta. Dela não há memória teórica que valha apesar de algumas fórmulas que fizeram fortuna mesmo que não tenham tido êxito: no pasarán!; mas vale morir de pié que vivir de rodillas...).
Todavia, a História (com H grande) é atravessada subterraneamente por vultos femininos imorredouros, de escritoras e artistas, de intelectuais de enorme influência e mesmo de políticas que marcaram o seu século, desde Maria Teresa a Catarina a Grande ou as primeiras Isabel, a inglesa e a Católica.
A História é feita, porém, por quem a escreve e houve que chegar ao século XX para, independentemente de feminismos mais barulhentos que eficazes, se começar a desenhar com vivacidade uma outra cartografia da “metade do céu”.
Aproveito, portanto, a boleia da última capa da “revista” do Expresso que destaca Elvira Fortunato (já aqui citada pro mais de uma vez!) para festejar, desde já, dois Nobel a Química, um a Física e duas mulheres que, além de alemãs e europeias (cela va de soi) são duas extraordinárias impulsoras das melhores e mais abertas políticas que nos dizem respeito. Refiro-me obviamente, a Angela Merkel (várias vezes aqui citada) e a Ursula von der Leyen, ctual Presidente da Comissão.
De Merkel já referi, mesmo quando isso era politicamente incorrecto, algumas decisões que não só dignificaram a Alemanha mas sobretudo a Europa, pelo exemplo e pela oportunidade. Bastaria lembrar o acolhimento de um milhão de refugiados para perceber a diferença que faz desta Chanceler, uma estadista numa época em que isso é mais raro do que nunca.
De Ursula von der Leyer que foi recebida com frieza e desconfiança também já não é preciso falar. Em menos de um ano, esta aristocrata e médica, mãe de sete filhos (e ainda por cima uma bonita mulher!) calou todas as críticas, aliás injustas e todas as desconfianças imerecidas. Se o seu program se cumprir a 50% já teremos dado um salto quantitativo e qualitativo digno de menção em todos os manuais de História.Há minutos, recebi via mail uma comunicação da “wook” que me informa da atribuiçãoo do Novel de Literatura à americana Louise Gluck. É a 16ª mulher a receber esta distinção, o que mostra à evidência quão forte é presença de homens neste campo.
Não a conheço, sequer de nome, sei que há um poema dela traduzido (rapinei-o e vai no fundo desta página) e que tem 77 anos. Quase a minha idade! Borges, esse gigantesco autor que a Academia sueca preteriu sempre por razões incompreensíveis, absurdas ou meramente ideológicas, disse uma vez quando o prémio recaiu sobre um autor mais novo um ou dois anos do que ele: ainda bem que se lembraram da juventude!”.
Parafraseando-o, com diversa intenção, direi que ainda bem que se lembraram de uma velha senhora nova-iorquina, ou seja vinda de uma elite cultural americana obnubilada pela sombra infamante do trumpismo e dos seus sequazes analfabetos.
Deixo-vos com o poema Circe de Louise Gluck. A tarde tornou-se gloriosa e o ar outonal mais transparente
Nunca transformei ninguém em porco.
Algumas pessoas são porcos; faço-os
parecerem-se a porcos.
Estou farta do vosso mundo
que permite que o exterior disfarce o interior.
Os teus homens não eram maus;
uma vida indisciplinada
fez-lhes isso. Como porcos,
sob o meu cuidado
e das minhas ajudantes,
tornaram-se mais dóceis.
Depois reverti o encanto,
mostrando-te a minha boa vontade
e o meu poder. Eu vi
que poderíamos ser aqui felizes,
como o são os homens e as mulheres
de exigências simples. Ao mesmo tempo,
previ a tua partida,
os teus homens, com a minha ajuda, sujeitando
o mar ruidoso e sobressaltado. Pensas
que algumas lágrimas me perturbam? Meu amigo,
toda a feiticeira tem
um coração pragmático; ninguém
vê o essencial que não possa
enfrentar os limites. Se apenas te quisesse ter
podia ter-te aprisionado.
a vinheta: o "casal primordial" dogon, versão sentado (bronze). De todo o modo sempre são 71 centómetros. O povo dogon não é o único a recorrer a esta associação homem mulher em igualdade de circunstâncias, posição e dignidade. Todavia, é o de maior nomeada.