au bonheur des dames 421
Auf Wiedersehen Frau Merkel
mcr, 23.10.21
Antes que o galo cante três vezes, aqui me apresso a dizer adeus à senhora Merkel e na minha estricta e pessoal qualidade de europeu, lhe agradecer o seu trabalho, os seus esforços, a sua obstinação.
Nunca alinhei no coro que durante anos (e fundamentalmente no tempo da crise) se atirava a chanceler cobrindo-a de insultos e de impropérios.
Lembraria, se valesse a pena, que, se responsabilidade pelas dificuldades portuguesas da época havia, elas se deviam a uma política tresloucada levada a cabo cá, por gente de cá.
Em Portugal sempre houve a ideia de que os nossos males, as nossas desgraças, eram apenas e só fruto da acção de outros, do destino, da natureza malvada, de um fado aziago.
Raras vezes, ou mesmo nunca, se tentou entender as razões alemãs para a observância de regras estrictas no domínio orçamental.
Eu, em tempos, vi uma nota de um milhão de marcas e (não o posso garantir pois já lá vã pelo menos sessenta e tal anos) com uma sobrecarga carimbada que lhe decuplicava o valor.
Datava esta nota da terrível inflação alemã fruto ainda da derrota na primeira guerra mundial e das condições draconianas saídas do Tratado de Versalhes de 1919.
Antes que me caia meio mundo em cima, asseguro que não dou de barato as tremendas responsabilidades alemãs (e mais ainda as austríacas) no desencadear do conflito. Ingleses, franceses e russos, sem falar dos sérvios e dos croatas, aproveitaram a ocasião e lançaram-se com inusitada alegria numa carnificina que destruiu a Europa então conhecida.
Acabada a contenda, os países vencedores, trataram de garantir que os vencidos, Alemanha, Áustria e Turquia pagariam, com língua de palmo, a sua intervenção.
Sabemos, hoje, quais as consequências desse mau momento internacional. A Alemanha atirou-se de pés e cabeça para a manápula duvidosa de Hitler, um alucinado que se julgava um estratego. A Áustria entregou-se vibrante de alegria (ao contrário do que, depois de 1945, quis fazer crer ao Anschluss. A Turquia perdeu o controle de ilhas a menos de um quilómetro da sua costa, para não falar na perda do império médio-oriental que ainda hoje é palco de situações confusas e sede de tiranias religiosas vindas do confim dos tempos.
No caso alemão, há um testemunho que recomendaria a todos os leitores. Aquilino Ribeiro, casado em primeiras núpcias com uma senhora alemã, deixou narradas as suas impressões de viagem à Alemanha em 1919. A obra tem por título “Alemanha ensanguentada” e é de uma sagacidade extraordinária. Aquilino chega a prever o regime hitleriano. Ou isso, afirma, ou um regime copiado dos bolchevistas.
O trauma da inflação terá sido de tal ordem que cem anos depois continua a alimentar a imaginação financeira alemã actual. E a teoria! E a política...
Por cá, se não foi em uníssono pouco faltou, para toda a Esquerda se esganiçar contra a chanceler.
Merkel, numa das primeiras vezes que veio a Portugal, foi alvo de fortes injúrias, já não recordo se em manifestações em locais onde ela passaria.
Entretanto, as coisas mudaram, Merkel permaneceu e mesmo mantendo o mesmo rumo na sua governação (tendo, porém, o cuidado de se adaptar aos novos tempos)e começou a ser reconhecida não só como um pilar da ideia europeia mas sobretudo, do melhor da civilização europeia, a saber uma compaixão pelos migrantes a quem abriu as portas. Um milhão de pessoas, cálculo por baixo, encontrou um país graças à determinação e à teimosia de Merkel. Teimosia, tintada de uma profunda fé, de alguém nascida e formada na antiga RDA, que se enfrentou com a clara hostilidade de uma certa parte da sociedade alemã, sobretudo a do antigo leste.
Nesse momento, Angela Merkel, foi o símbolo de uma certa ideia de civilização europeia, e desafiou toda a elite governante da União, que regra geral pouco fez pelos que demandavam socorro e abrigo.
É claro que a Alemanha carecia e carece de mão de obra mas não menos verdade é que, em circunstâncias idênticas está a maioria dos países europeus e não se vislumbrou em nenhum deles uma tão evidente atitude e uma tão nobre boa vontade.
Não é por acaso que, as multidões que se acumulam às portas da Europa pedem em alta grita “Germany, Germany”. A Europa, a nossa, tem passado nos últimos quinze anos, por vicissitudes diversas, por altos e baixos, mas se aqui estamos, apesar de tudo, muito se deve à Alemanha e à sua líder.
Não foi por acaso que, nesta última reunião, ela foi alvo de uma comovente despedida recheada de aplauso com todos os restantes dirigentes em pé. Não é por acaso que Obama envia uma mensagem tão entusiástica.
Vamos sentir a falta desta mulher que poderia ter sido uma “dama de ferro” mas que, pelo contrário, sempre privilegiou o diálogo. Veremos se o seu sucessor faz igual pois é duvidoso que consiga fazer melhor.
O balanço dos dezasseis anos de governo de Merkel ir-se-á fazendo nos próximos meses porque os tempos que se aproximam vão ser férteis em problemas, a começar pela continuação das discussões sobre o Brexit.
Não deixa de ser curioso e, aliás, exemplar que Merkel saia do poder por seu pé. Nada garante que a CDU perdesse as eleições com ela como candidata dada a escassa diferença de votos na última eleição.
Vamos, ou eu vou, ter saudades.