au bonheur des dames 422
Um, dois, três... cem orçamentos
mcr, 29-10-21
Pelos vistos, vários, muitos, e dos mais importantes membros da geringonça, ala esquerda, entendiam (e entendem) que se um orçamento é chumbado, logo outro deve ser apresentado. E se chumbar, presume-se que um terceiro entrará na roda deste fungágá.
A princípio, pensei que este frenético esbracejar fosse fruto da imaginação delirante de algum aprendiz político retardado ou de alguém com humor. Porém, não, nada disso.
A coisa foi apresentada seriamente ontem, durante várias entrevistas, comícios e outro momentos de exaltação partidária e dolorida.
É verdade que sobre o tema, pode haver interpretações duvidosas à luz desta Constituição que, apesar de ser maior do que a légua da Póvoa, esqueceu alguns pontos que valeria a pena esclarecer.
No entanto, é prática constitucional mais ou menos universal e de pacífica aceitação pela doutrina que um chumbo deste teor carrega consequências fortíssimas e implica quase obrigatoriamente a queda do Governo.
Tenho mesmo a ideia, porventura errada, de que na 1ª República (a dos 51 governos em 16 anos, um recorde mundial) se o Orçamento soçobrasse no mar bravio da anarwuia parlamentar, o Governo ia à sua vida. Digamos que este processo, o chumbo, até foi dos mais suaves que se usaram para mandar um Governo pela borda fora. Muitas vezes preferiu-se a intentona, o golpe de Estado, a revolução com o seu cortejo de misérias, de bombas, de ataques às redacções dos jornais adversos para “empastelar” os tipos, enfim o habitual.
Contudo, já que o argumento pareceu ser gravemente sugerido, seria bom tentar perceber como é que as coisas poderiam suceder.
De facto, as alternativas são exíguas. Ou o Governo, enfia a carapuça e vai cerebrar para um cantinho sossegado e depois reaparece mansamente com outro Orçamento, ou apresenta o mesmo com ligeiras alterações, digamos, com a maquilhagem retocada.
Em ambos os casos, de facto, o Governo com o documento bis vem dizer que se tinha enganado no primeiro e que, depois de aturado trabalho das meninges sempre fecundas do Ministro das Finanças surdiu outra maravilha (ia a escrever maravalha mas temo que os cavalheiros que vieram à praça com a ideia peregrina de segundo orçamento não saibam que a palavra existe). Só esta pobre confissão serviria para vários efeitos, desde a chacota pura e simples, até à acusação de que, afinal, sempre havia um plano b que só não aparecera à duvidosa luz do dia porque o Governo tinha uma agenda escondida e malvada.
Também poderia acontecer que, os críticos clamassem que o segundo orçamento era mais do mesmo e vontade de gozar com o pagode.
Entretanto, como qualquer pessoa sensata saberá, ter-se-iam passado dias, seguramente semanas, que isto de arranjar novos números, novas alternativas, mais receita e mais despesa é como Roma e Pavia que se não fizeram num dia.
De todo o modo, a ideia mais geral que ficaria era a de que isto era uma espécie de jogo dos quatro cantinhos jogados por cinco parceiros.
E como justificar esta furiosa, dramática, longuíssima troca de argumentos, acusações, declarações ameaças?
Alguém está a ver o PS a fazer o papel de tonto no meio da ponte?
Eu bem sei que, nesse partido, há quem diga coisas bizarras, a menor das quais será a dos banqueiros alemães ficarem com as perninhas a tremer só de pensar no sr. Pedro Nuno.
Mas, convenhamos, um partido que quase roçou a maioria absoluta não pode, sem se desautorizar dramaticamente, andar aos caídos a mendigar, para além do razoável, o renitente apoio de dois partidos que aumentam de cada vez as suas exigências e, inclusivamente, tentam contrabandear no texto orçamental matérias que nada tem a ver com ele, que não cabem sequer nele.
O PS também não sai desta guerra sem culpas. Ao aceitar meter o salário mínimo, matéria que me parece de exclusiva competência das parcerias Governo/patronato e sindicatos, arranjou um par de botas que vai ter dificuldade em calçar.
Mas, voltemos à curiosa e, julgo, inédita, teoria da apresentação de novo(s) documento(s) de cariz orçamental. Se o segundo documento for chumbado, destino provável a menos que os chumbadores do primeiro momento, temendo eleições se apressem a voltar com a palavra atrás e engulam, ao fim e ao cabo, uma versão finalmente semelhante à chumbada no meio da vozearia inflamada anterior.
Haverá possibilidades para uma terceira tentativa?
Eu percebo a razão deste último truque. Afinal, PC e BE (e aquela coisa informe chamada “os verdes”, sucursal absoluta do PC e só existente no parlamento por se apresentar sempre coligada com o primeiro) terão sonhado com deserções à direita para acudir ao PS naquela hora de aflição. Uns deputados da Madeira, outros dos Açores, um qualquer émulo do expediente do queijo Limiano, sei lá.
Porém, previram mal. Contaram com sapatos de defunto antes do mesmo estar no descanso eterno. As contas, eventualmente dolorosas, saíram furadas e agora é ir às urnas esperando que estas não se tornem funerárias para quem, aos olhos de toda a gente, contribuiu para este cenário.
E devo acrescentar: quem se socorre de ideias tão estrambólicas para virar o bico ao prego, merece uma punição eleitoral. Forte! Isto, apesar de tudo, não é uma republiqueta bananeira, nem um antigo, atento, obediente, venerador e obrigado país do pacto de Varsóvia.
O título faz uma (muito) vaga referência a uns dos slogans mais tripudiados da então jovem República Popular da China: “que cem flores desabrochem que cem escolas compitam” A frase foi levada a sério por muita gente e os resultados foram os do costume: mais uns milhares de cidadãos repreendidos, presos, desaparecidos e depois, “tudo como dantes quartel general em Abrantes”. Até hoje como se vê com os exemplos de Macau e HongKong: flores só de plástico e competição só nos louvores ao sr Xi Jiping.
*a vinheta: movimento das cem flores (China)