au bonheur des dames 424
Zé Mário
mcr, 19.XI.2019
(52 anos, quase dia por dia, de um concerto entre amigos em Paris. Ai, amigos meus, tão livres que nós éramos...)
Chega-se a uma idade em que as más notícias são a regra e as mortes se acumulam até perderem sentido. Agora, foi o Zé Mário Branco, uma amizade de quase 60 anos, forjada durante a sua curta estadia em Coimbra. Em determinada altura, hospedou-se no meu quarto, já não sei por que motivos. Provavelmente entendia que o seu dinheiro seria mais bem aplicado do que num aluguer. A D Laura, minha (e de muitos outros) generosa hospedeira facilitou um colchãozinho e ele foi meu “cabide” durante umas semanas.
Depois desapareceu, melhor dizendo, fugiu à tropa e à guerra. Sabíamos que a Isabel (Alves Costa) mãe de dois dos seus filhos fora ter com ele a Paris. Em Novembro de 1967, o CITAC, um grupo de teatro estudantil de Coimbra, no qual eu estava integrado, rumou a Paris para, no âmbito da 5ª Bienal de Paris, apresentar” o “Grande Teatro do Mundo” encenado por Victor Garcia. Foi nessa semana fantástica, a poucos meses do “11 de Março”, que reencontrei o Zé Mário que principiava uma auspiciosa carreira de cantor e músico. Num pequeno bar da margem esquerda ouvimos, em primeira mão, canções como “ronda do soldadinho”. Mais tarde um disco, com o mesmo nome, contrabandeado chegar-nos-ia a Coimbra. Quando o Zé regressou, logo depois do 25 de Abril, voltámos a encontrar-nos em espectáculos ou simplesmente em Lisboa.
Quando comecei a trabalhar na Delegação Regional de Cultura, no Porto, idealizou-se uma série de concertos de música popular que começaria, nem podia ser de outra maneira, com o Zeca Afonso, outro velho amigo de Coimbra. E com ele, depois dele, vieram o Zé, o Vitorino, o Sérgio e viria, se não morresse abruptamente, o Adriano. Fiz parte da pequeníssima equipa (onde destaco a acção extraordinária e perfeita de Luísa Feijó) que trabalhou arduamente para apresentar estes espectáculos no “Auditório Nacional de Carlos Alberto”. Escusado será dizer que registámos enchente sobre enchente. Foi a DRN quem, primeiro que quaisquer outros, deu uma sala do Estado à música de intervenção e a uma série impar de cantores de mpp que ainda hoje são escutados e aplaudidos.
Depois, o resto é história, uma que outra vez lá nos encontrávamos e retomávamos uma antiga e quase ininterrupta conversa começada nos anos sessenta em Coimbra à luz fraterna do associativismo estudantil e das lutas que íamos travando com maior ou menos sucesso.
Com a Isabel a relação foi mais continuada pois além dela se instalar no Porto, foi na DRN, e com a DRN, que lançou o Festival Internacional de Marionetas do Porto que dirigiu até, subitamente, morrer. Desses anos de trabalho também já foram, entre outros, o Rui Feijó (primeiro e insubstituível Delegado Regional do Norte) e o Manuel Matos Fernandes, um animador cultural cultíssimo e com uma invulgar capacidade de trabalho.
Da qualidade musical do Zé, para além do seu enorme talento poético, outros falarão. Da sua generosidade e do seu intenso labor em aproximar músicos, estilos e gerações diferentes haverá seguramente melhores e mais avisados testemunhos. Mas do amigo que trocava sonhos naqueles dias sombrios de Coimbra em que fintávamos a adversidade, a polícia, e o embiocamento provincial e provinciano do país, posso falar sem rebuço. Como uma das suas criações, o Zé era um “Ser Solidário”. E isso vai fazer falta, muita falta.
(Nota à parte: foi noticiado que se estava a preparar uma edição completa e, espero, “raisonée”, da sua obra musical. Esperemos que isso se torne realidade tão depressa quanto possível. E, já agora, por favor não o queiram emparedar no Panteão como vai sendo moda... Isso seria uma segunda morte para ele. E para mortes basta uma e a definitiva