au bonheur des dames 424
Sunday, bloody sunday
mcr, 31-10-21
Os domingos de chuva e mau tempo são difíceis de aturar. A maioria das pessoas aproveita o domingo para fingir que gosta de ar livre, de actividade desportiva, de vida dita sã.
Ora um domingo a fugir para a intempérie (enfim, para o mau tempo) estraga os planos a toda a gente.
Eu sempre desconfiei dos atletas de fim de semana que se apresentam equipados a rigor ou ao que eles pensam ser de rigor, fazem umas breves corridas e retiram-se gloriosamente para casa onde os espera o cozidinho à portuguesa, as tripas, a feijoada ou outro mimo culinário “de substância” que uma fome atávica ainda nos obriga a dar-lhe à fartazana quando se pode dar o gosto ao dente.
Chove, está um dia que convida a tudo e sobretudo à casa, home sweet home. O povo resmunga, a CG acha que estamos a ser perseguidos pelo mau tempo, só porque hoje é o segundo ou terceiro dia de chuva num Outono glorioso.
Os portugas nem sabem o que tem, isto é o sol em pleno rezentos ou mais dias por ano. Deviam ir passar um estágio de alguns meses naqueles ascéticos países do Norte, a começar logo ali na Bélgica. Já não falo da Suécia ou das ilhas escocesas, da Rússia das noites brancas e dos dias escuríssimos.
Eu mesmo, que me armo em carapau de corrida, já tive o meu momento de lamentação pelo sol desaparecido em parte incerta. Foi na Alemanha há uns bons trinta e muitos anos, na Baviera, em Murnau, mais precisamente num belo mas ainda pouco doce mês de Abril. Durante uns bons dez dias o ceu foi cor de chumbo (plúmbeo, aproveito esta aberta para usar uma palavra que já ninguém usa. Convém retira-los do armário – ou do dicionário, arejá-las, engraxar-lhes as botas, que as palavras, como as pessoas precisam de exercício uma vez por semana mesmo se depois voltam à sonolência pacífica e ruminante dos cartapácios de coisas antigas)
Murnau éra, é, de certeza, uma terra encantadora pequenina, à beira de um magnífico lago, de um pântano de que restam poucos vestígios. E uma montanha imponente onde na época propícia se faz ski. Aliás a cidadezinha fica no Gebiet de Garmisch-Parenkircen essa sim afamadíssima estação de desportos invernais. No meio fica Oberamergau, conhecida pelo seu presépio natalício. Bons tempos lá passei nessas terras do sul da Baviera, à beira da Áustria e a caminho da Itália, donde vem um vento, o Fohn que sobe as montanhas e ao descer enlouquece os bávaros. A cidade é minúscula: Uma dúzia de hotéis, um Goethe Institut, um bosque à beira lago, e a memória dos expressionistas pois Kandinsky o enorme, foi amante da Gabrielle Muentner e em casa dela reuniu-se o melhor dsaa escola, Mack, Franz Marc outros. Deste último há um airoso museu em kochel a 20 km de Murnau, bom passeio, prazer garantido.
Não sei o que vale o meu actual alemão, enferrujado que está e sem préstimo. Todavia goatei desse pequeno exílio, da belíssima cerveja, do lago, das Frauleinen todas.
Aguentei os primeiros dias da greve solar mas ao sexto ou sétimo também senti o apelo do Sul, do sol e do sal. Que qure? Sou portuga até ao sabugo, ainda por cima da beira mar, o meu horizonte foi sempre o mar, nem os belos lagos tudescos, me tiram dessa velha paisagem em que nasci e na qual quereria morrer. É que em morrendo, escusavam de levar o meu corpo para o cemitério. Era airarem-me ao mar para os peixes me comerem a carcaça. Bem lhes devo isso que tantos e tão bons fui comendo. Hoje mesmo, estamos a preparar um robalo enorme e assado como Deus manda. Com um vinho branco vai ser uma festa.
Não, eu não posso queixar-me do domingo mesmo se aproveitei o título e um filme com uns bons cinquenta anos para titular o folhetim.
Bom domingo para vós, leitores generosos que me aturam. E, como diz o Papa, santo homem que conhece as suas gentes, “Buon pranzo!”
* na vinheta: Murnau visto por Gabrielle Muntner