Au bonheur des dames 433
A remoção da moção
Por mais que uma pessoa não queira espantar-se, as circunstâncias não a deixam em paz. Desta vez, temos a moção de censura do CDS.
Ora atente-se: esta moção como duas dúzias de outras anteriores no actual regime, estava condenada ao fracasso. Politicamente, este fenómeno não passava de um anunciado nado-morto.
Não havendo maioria para a votar, a moção ia morrer de morte macaca. O CDS sabia disso perfeitamente e, supõe-se que a geringonça não o ignorava.
Isto dito, pergunta-se: então, supondo que a professora doutora Cristas não é tonta (e pelo que se sabe e vê, não o é) que efeito pretendia o CDS?
A princípio, tinha um conjunto de propostas sobre o modo de combater os fogos, a situação decorrente dos mesmos e o reordenamento de todo o interior. É facto que boa parte das propostas do CDS estavam, ou iriam estar, abrangidas pelas medidas propostas pela Comissão Independente. Sobravam algumas que ou não foram ainda acolhidas ou poderão ser desnecessárias para já. De todo o modo, na altura do anúncio da moção ainda não se sabia com segurança que medidas exactas iria o Governo tomar num Conselho de Ministros extraordinário. Claro que o bom senso parecia apontar no sentido de serem acolhidas todas as propostas da CI mas uma coisa é o bom senso e outra a política quotidiana.
Uma vez anunciada a moção, começou a berrata. Que aquilo era uma vileza, uma canalhice, que o país estava de luto, que havia aproveitamento político...
Lembremos que quando se apresenta uma moção de censura é porque, para além da sua eventual justeza, alguém quer tirar dividendos políticos. Por isso mesmo, houve já um quarteirão de moções perdidas. A maior parte delas, aliás, vinha da Esquerda que, agora, se disfarçava de virgem pura e incapaz de querer dividendos políticos de uma acção normal em qualquer Parlamento democrático.
Se quisermos verificar a cronologia, decerto notaremos que entre a decisão de um Conselho de Ministros (ao sábado) e a discussão da moção (uma terça imediatamente a seguir) pouco espaço resta para eventualmente modificar a agenda da Assembleia.
Mas há mais: o CDS nunca terá sequer sonhado com uma vitória. Aquela gente terá defeitos mas ainda deve conhecer a aritmética.
Resta, pois, tentar perceber o que é que o partido “centrista” (convenhamos conservador com uns laivos de Democracia Cristã) queria. Será que apenas (e já não é nada pouco) queriam mostrar ao país alarmado e em estado de choque, quem estava com um Governo que, não há volta a dar-lhe, falhou clamorosamente (uma Ministra incompetente, uma Direcção da Protecção Civil sem preparação, sem qualidade, nomeada as mais das vezes com base em critérios políticos, uma tibieza generalizada por parte dos poderes públicos, um Primeiro Ministro incapaz de mostrar uma réstea de comoção) e mortes, muitas mortes. ).
O CDS pretendeu, e conseguiu, mostrar aos portugueses, ou a alguns portugueses que BE e PCP, falam muito, exigem muito mas que, quando a coisa é a sério, não tiram da sua vozearia as consequências que poderiam parecer impor-se. Que o PS, claramente fragilizado, como aliás afirmou um dos novos ministros, só se aguentava graças à muleta da geringonça.
Poder-se-á retorquir que isso é coisa por demais sabida. Desde o dia em que um Costa, derrotado nas urnas, ressuscita da tumba eleitoral, para formar um governo que não tem paralelo na UE e que só durará enquanto este instável equilíbrio se mantiver. Até há meses, futurava-se que Costa, mal se apanhasse com as costas quentes e a popularidade em alta, tentaria novas eleições e a maioria absoluta. E, por isso mesmo, durante, longo tempo, PC e BE nem se mexiam. Não havia greves, manifestações, protestos públicos, mas tão só umas mansas admoestações, uma espécie de pedidos a medo, ora deem lá qualquer coisinha para isto e para aquilo.
Com os fogos, esta idílica paz estoirou. Primeiro, porque o que se passou foi medonho. Depois, porque os muletas do PS fugiam a sete pés de qualquer responsabilidade na actual situação, finalmente porque o próprio PS ficou atordoado e incapaz de se mobilizar a tempo e horas. Tudo isto, notem, depois de uma eleições autárquicas que confortaram o PS, nada deram ao BE e mostraram um cartão vermelho vivo ao PC que perdeu de uma assentada dez municípios. Entretanto, o PPD afundava-se e o CDS registava um score a todos os títulos notável. Claro que as perdas do PSD são eventualmente reversíveis e a vitória do CDS é, tão só a vitória de um pequeno partido. Não faz mossa a ninguém. É bom para o ego de Cristas mas ainda não foi desta que se fez História com H grande.
A discussão da moção foi um espectáculo pungente. Primeiro, a moção estava esvaziada pela assumpção das medidas propostas pela Comissão Independente. Depois, porque já tudo fora dito antes, quer pelos adversários, sobretudo, mas também pelos defensores da moção. Finalmente, porque daquele delirante gargarejo de tenores áfonos pouco ou nada saiu de novo.
É bom lembrar que, entre nós, apenas uma moção de censura teve um imerecido êxito. Aquela suscitada por um partido nascido do nada e a ele, feliz e rapidamente, regressado, contra um governo minoritário de Cavaco Silva. Com uma confrangedora miopia política, o PS apoiou o PRD (um ajuntamento sebastianista, eanista e populista) e, apesar dos avisos de Mário Soares (na altura Presidente da República), Cavaco tombou para depois se levantar com duas esmagadoras maiorias absolutas.
Só que, enquanto o PS pouco tinha a perder e o PRD corria o risco de quase desaparecer, Cavaco tinha tudo a ganhar. E o PC, por seu lado, olhava para aquilo e sentia que, fosse qual fosse o resultado, alguma migalha lhe cairia no regaço.
Desta vez, Cristas nada tinha a perder. Queria, e conseguiu, colar o PS ao BE e ao PC (não vale a pena falar nos inexistentes verdes e no PAN. Uns, porque são um pseudónimo pouco original do PC e outros porque nunca conseguiram explicar ao que vinham, como, porquê e para quê. Além do mais são um puro produto urbano, uma espécie de escoteiros laicos e pouco imaginativos. Eventualmente, devem o seu solitário deputado ao voto de protesto mas nem isso merecem.
Não vou referir o PSD. Cumpriram a sua parte mas estão metidos numa eleição interna que, até à data apresenta dois candidatos piores um que o outro, envelhecidos e sem imaginação. De todo o modo, quem ganhar vai ter de atravessar o deserto da oposição e pode mesmo acontecer que, se as coisas melhorarem, apareçam outros candidatos mais credíveis, mais novos e menos cansados.
Em último lugar: a derrota da moção fortalece ou fragiliza o Governo. Costa tentou dizer que a derrota da moção fortalecia o Governo. Não é verdade a menos que o seu resultado fosse imprevisível. Não o era. Sabia-se, sem dúvida alguma, que a hipótese da moção vencer era inimaginável. E tê-lo-á fragilizado? Também não parece garantido. O Governo vive do apoio do BE e do PC mas isso já não é um mistério para ninguém. De todo o modo, PC e BE tiveram algum trabalho par explicar o seu apoio. Foi por isso, e só por isso, que repartiram a resposta em dois planos. Criticaram, sem especial convicção, o PS e atiraram-se que nem gatos a bofe ao CDS. Mas se a primeira acção não resultou convincente, a segunda por estridência demasiada também não teve especial êxito.
E se bem repararem ninguém discutiu efectivamente a essência da moção. Uns tentaram fazer um processo de intenções e o acusado tentou defender-se. Nada mais.