au bonheur des dames 436
Imagine o leitor
mcr, 8 de Dezembro
Qualquer pessoa que leia distraidamente o jornal ou oiça também sem especial atenção os noticiários televisivos sabe, pelo menos intui que, para lá das acusações do PC ou do BE, há, claramente, um problema de perda de emprego.
Nada disso, porém impedirá alguém de dizer, na minha casa, na minha vizinhança, no meu bairro, entre os meus conhecidos ninguém ficou desempregado. Mesmo que isto seja verdade, só por sorte, é que isso pode acontecer. A perda de actividade em diversos ramos, leva ao layoff e ao desemprego. Sem apelo nem agravo!
Há, na sociedade portuguesa, um funesto hábito que é o de auscultar a realidade no seu pequeníssimo espaço. Se na minha rua não há desemprego, não há no bairro, na cidade, no país.
O mesmo se passa com o problema das vacinas. Cá em casa vacinaram-se todos, logo as vacinas chegaram a toda a gente. Nisto como no desemprego ou noutro qualquer fenómeno de massa a árvore não pode tapar a floresta, nem esta, aliás, esconder a árvore seca .
Numa sociedade em que haja cem pessoas em idade de trabalhar e necessitando de salário, não basta haver noventa com emprego. As restantes dez, dez por cento no caso, precisam de quem lhes acuda, de quem crie postos de trabalho , de quem lhes permite viver à custa do suir do seu rosto e lhes devolva a dignidade.
No caso das vacinas em falta, o problema não foi terem-se vacinado muitas pessoas. Foi o de não haver vacinas para todos.
E não houve vacinas para todos porque alguém, no inicio da primavera não percebeu que uma pandemia, para além dos efeitos próprios, tem outros nascidos do medo, do pânico, d ignorância. E isso faltou a quem deve e tem por estricta obrigação velar pelas condições de saúde dos portugueses. Aliás, mesmo ignorando muitas coisas, algo se sabia: a conjunção da pandemia com a fripe sazonal poderia criar a tempestade perfeita. Não basta vir agor, afirmar que se encomendaram mais doses de vacina do que habitualmente. A verdade é que se não encomendaram as suficientes. E isso, sabia-se desde Maio. Basta ir a uma hemeroteca pública e ler os jornais.
Acresce que, justamente numa altura destas, houve a tentaçãoo de centralizar a aquisição de vacinas apenas no Estado, ao contrário de anos e anos anteriores. As farmácias, melhor dizendo os seus órgãos representativos avisaram a tempo.
Obviamente, com os casos de infecção por covid a começar a crescer, mais e mais se instalou o temor do público. Provavelmente, pessoas que nunca se tinham vacinado resolveram fazê-lo. A gripe toca a todos, não escolhe cores, sexo ou idades. Poderá ter diferentes efeitos mas, associada ao medo do novo vírus torna-se uma ameaça real aos olhos de qualquer um. E foi isso que aconteceu, uma corrida aos centros de saúde e às farmácias. Os mais avisados cuidaram de se inscrever logo que Setembro chegou. Outros, menos cuidadosos ou mais confiantes no Estado super protetor, não se apressaram. Seja como for o que se previa aconteceu. Faltaram as vacinas, foi preciso ir à pressa procura-las num mercado mais que rarefeito. Basta o exemplo da municipalidade Oeiras. À cautela correram para o mercado externo, encontraram uma vacina de marca desconhecida em Portugal, importaram-nas sem dar cavaco a ninguém e distribuíram-na pelas farmácias do concelho. Gratuitamente! Sem aval, consentimento da DGS que se saiba. Dir-se-á que o autarca local está a preparar a recandidatura. É provável. Ainda bem, digo eu pois vários parentes todos de idade avançada conseguiram o que não conseguiam no centro de saúde nem na farmácia habitual.
O mesmo aqui asseverei quanto ao truque da dr.ª Ana Gomes. Com a idade que já tem, a vacina começa a ser um bem precioso e sobre a lei e o Infarmed prevalece o seu direito à saúde. Ponto final, parágrafo!
Que a dita senhora tenha, posteriormente dado umas desculpas esfarrapadas releva não do seu direito que defendeu com êxito mas da sua incapacidade em perceber o que fizera tentando dar uma de politicamente correcto!
Portanto, e resumindo, houve uma falha de previsão no Ministério da Saúde ou em algum dos seus serviços. A Ministra foi trapalhona nas suas fracas desculpas e, pior, não quis pedir desculpa como devia.
Agora, enfrentamos algo ainda mais importante: a vacinação contra o covid. O país começou tarde a preparar-se. A Comissão que vai superintender a operação acaba de se constituir e já avançou com uma lista de prioridades que, dado o alarido provocado por uma indiscrição do Expresso, já foi parcialmente corrigida.
O grande desafio é agora outro. Dado que serão as empresas produtoras a trazer até ao fim da linha as doses, há que administrá-las a quem quer prevenir-se. Ao invés do que se costuma fazer com assinalável êxito, com a vacina da gripe, as farmácias não fazem parte do grupo administrante. Pelo menos para já, recorda alguém mais prudente e menos ideólogo: “talvez se recorra a elas mais tarde”.
Este “talvez”, para usar uma expressão do Presidente da República, é “tolo”. A administração das vacinas, pelo menos na 2ª fase, vai causar uma clara perturbaçãoo no funcionamento normal dos centros de saúde que, todos o sabem, estão sempre atulhados de pacientes. Não sou eu que o digo, são os enfermeiros, os médicos, os especialistas que nos últimos dias tem sido vistos e ouvidos na televisão. Pelos vistos só não são ouvidos onde é preciso.
Quando as coisas desandarem, lá se recorrerá ao lusitaníssmo improviso. Como de costume. Com os resultados do costume. Que perda de tempo!
Por razões várias não vou escrutinar seriamente a carreira do dr. Francisco Ramos que, pelos vistos, sem que eu notasse, foi por três vezes Secretário de Estado da Saúde. Alguém deu por ele?
Li o seu extenso currículo e verifiquei que é um especialista em economia da saúde o que seguramente é excelente mas não adianta em nada ao caso em apreço. Aqui não se rata de economia mas de terapia pura e dura. Desconheço se é especialista em logística, algo que fará falta, muita falta, bo processo que se iniciará quando a vacina finalmente aterrar em Portugal. Não me atrevo a pensar que o senhor desconhece a realidade de muitos, a maioria dos centros de saúde. Eu só conheço um, e mal, e a única impressão que conservo é de bichas e mais bichas, pessoas a resmungar e `a espera. Pacientes, claro, pois também sabem que aquela é a sorte de quem é pobre.
PS: à cautela: sou um defensor do SNS, conquista que vem desde os grandes combates suscitados pelo famoso “relatório sobre as carreiras médicas” (1961) e trazido à “possível” discussão pública, ainda antes do 25 de Abril por grandes nomes da medicina como Miller Guerra, Albino Aroso, António Galhordas, Fernandes da Fonseca. Cito apenas estes por de per si, já constituírem um leque bastante variado de posicionamentos políticos. Não pretendo obscurecer a memória do António Arnault com quem privei em Coimbra. Até fomos membros da mesma equipa de propaganda nas eleições de 1969 tendo feito alguns comícios em conjunto. Arnault teve a “sorte” (mas a sorte dá muito trabalho!) de ser ministro no tempo certo, já com a liberdade assegurada e forte apoio político. Não é o pai do SNS mas um dos pais. Tal não o diminui pois coube-lhe a enorme honra de apor o seu nome na lei que finalmente criou o SNS.
* com este texto pretendo agradecer a todos quantos, concordando ou não, me quiseram escrever sobre um folhetim anterior. A a Miller Guerra, um professor que esteve sempre ao lado dos estudantes quando isso era perigoso.