au bonheur des dames 470
O medo guarda a vinha
mcr, 21-o2-22
Uma senhora comentarista entende que os portugueses “movidos por imperativo ético”… por “convicção que adoptassem teriam t impacto na vida colectiva” levaram a cabo um confinamento e restantes medidas mesmo antes de isso ser tornado obrigatório pelo Governo.
Convenhamos que isto é uma visão cor de rosa, cor de rosíssima da situação e das motivações de quem a viveu.
Vivo numa zona com cafés, restaurantes e demais comércio de proximidade e assisti aàs mais variadas reacções ao impacto inicial da pandemia mesmo antes de serem afoptadas medidas de qualquer espécie. Vi angústia, medo, surpresa, rara indiferença e muito menos conhecimento do que se passava. Note-se que nesta zona de classe média alta e eventualmente informada por jornais ou pela televisão, as reacções mais rápidas apenas traduziam receio e espanto. Cada um procurou salvar a pele, atordoado pelas notícias que vinham de outros sítios e, nomeadamente, da Itália onde eram evidentes os efeito devastadores do primeiro assalto do vírus.
Uma boa maioria das pessoas e alguns dos estabelecimentos sentiu a necessidade imediata se se barricarem em casa ou de fechar portas mas, ao que me iam informando era o medo do contágio, da hospitalização, a clara compreensão da falta de meios eficazes de combate à nova e desconhecida doença o que movia as pessoas. Vira agora dizer que o primeiro sentimento foi o da solidariedade só por extrema boa vontade em acreditar nas virtudes republicanas que diariamente se espezinham alegremente.
É provável que, no decurso dos acontecimentos, algum sentimento nobre tenha, entretanto, invadido a cabeça das pessoas mas e bastava ler os jornais, ouvir a televisão para perceber que se uns cumpriam as regras impostas (e em Portugal há esse arreigado hábito de obedecer a quem manda sem perguntar por quê, para quê e por quanto tempo) começaram ao fim de poucos meses a verificar-se constantes desobediências ao regulado sobretudo no que dizia respeito ao transito a pé nos fins de semana ou no acesso às praias anas proximidades do Verão.
E isto, esta pouca atenção às instrucções da DGS, da polícia, do Governo, não foi apenas cá mas um pouco em toda a parte. É possível que em algum país nórdico (Suécia excluída) tivesse havido uma pequena maré de solidariedade e responsabilidade partilhada sem que os governos a tenham imposto ou sequer ameaçado com sanções os incumpridores.
Mais tarde, as multidões jovens que repovoaram as noites do Bairro Alto ou da baixa portuense provaram à evidência que o sentimento dominante, pelo menos nos grupos etários mais jovens e(presumia-se) menos atingíveis pelos piores efeitos da doença, era a de aberta rebelião.
E os mais velhos, aterrados pela ceifa violenta que o covid fazia sobretudo nos maiores de sessenta anos, continuavam a fechar-se a sete chaves.
Esta realidade que qualquer consulta a uma hemeroteca ou aos arquivos da televisão torna evidente, não se coaduna com a tese acima descrita.
É verdade que, entre nós, a confiança nos governantes não é especialmente forte. Todavia, há uma longa, dolorosa e histórica experiência no que toca à desobediência cívica e ao protesto. Partilhamos esses contrastados sentimentos com outros países do Sul europeu, nomeadamente, a Espanha, a Itália ou a Grécia, curiosamente (ou talvez não) países onde a ideia democrática demorou longamente a estabelecer-se, enraízar-se e entranhar-se nos hábitos e na vida de todos os dias.
As pessoas podem ser alegres, bem dispostas, prontas a viver a vida sem especiais dúvidas existenciais, prontas a gozar o sol de que generosamente disfrutam durante quase todo o ano. Apesar de religiosas, a religião que usam é menos severa, menos exigente e mais, muito mais paganizada. O catolicismo (na Grécia, a ideia ortodoxa) é vivido muto tu cá tu lá com os santos, com o folclore mariânico, com padres foliões e santos populares e bonacheirões. A Inquisição com que fomos atormentados quando desapareceu, deixou mais beatos que crentes disciplinados e sempre atreitos a pecar com a vaga certeza que no fim uma extrema unção rápida e despreconceituosa nos leva para o paraíso.
Como se seguíssemos a lição de Prévert:
notre pére qui êtes au cieux
restez-y.
Et nous resterons sur la aterre...
Infelizmente, hoje, os comentadores por muita sociologia que tenham aprendido não leram os poetas e treleram Rousseau. Daí este ledo engano sobre a motivaçãoo dos portugueses em tempos de v´írus maléfico
*na vinheta: Jacques Prévert um dos mais amados poetas franceses