au bonheur des dames 476
Muda a hora. E a vida?
mcr, 26-o4-22
A pergunta do título nada tem de retórica, sobretudo nestes tempos sombrios que atravessamos.
Não vale a pena falar da guerra que se trava nos limites da Europa pois aquilo parece estar para durar. Com um desperdício absoluto de vidas humanas, de um país semi-destruído de outro que parece ter perdido a alma, uma alma que no século XIx e parte do XX pareceu estar em consonância com o melhor do que a europa tinha. Mesmo o interregno soviético teve os seus momentos na poesia, no cinema, na música e na pintura. Teve, digo, porque rapidamente a “ordem” se impôs e essa imensa criatividade foi convenientemente amordaçada, perseguida e destruída. Ou quase: já aqui referi essa imensa trilogia poética (Akmatova, Tsetaieva e Pasternak) que resistiu, persisttiu sobreviveu a uma sorte temível que se resolveu nos gulags, no suicídio na auto-censura ou pura e simplesmente no silenciamento forçado e imposto. (des)graças a Jdanov e aos seus imitadores apareceu algo de repelente a que se chamou arte e cultura soviéticas que se esvaíram na mediocridade, no servilismo na cumplicidade com um poder ilimitado e castrador.
É verdade que, em certos e reduzidos círculos muito próximos da clandestinidade, a chama se conservou. Mas, como, eventualmente, hoje, essa ténue resistência (mesmo se corajosa e teimosa) funciona praticamente em circuito fechado, em “samizdat”, temos um povo anestesiado desconhecedor do mundo exterior, conservado numa espécie de casulo temporal, à mercê da poderosa máquina de propaganda (que lá tem a alcunha de “informação”) oficial, do habitual fatalismo que impregna, ou parece impregnar, o modo de vida russo. Não deixa de ser curioso que os momentos de c rise sejam adivinhados por a televisão desatar a passar ininterruptamente os grandes ballets russos, os de sempre, mesmo que convenientemente depurados da novidade e da provocação que Diaghilev e outros lhes pretenderam dar.
E há, curiosamente, paralelos com o que se passou em outros Estados autoritários, por exemplo na Alemanha. Neste último caso, foram as próprias autoridades nazis que depois de decidirem queimar os livros “maus” (uma infinidade a que nem “Emílio e os Detectives” escapou por ser escrito por um Erich Kastner, escritor maldito no 3º Reich) entenderam (!!!) expor as pinturas e esculturas de uma série de artistas também malditos. Foram as célebres exposições de “arte degenerada” que terão atraído as atenções de muita gente que “viu claramente visto” o vício da genialidade de umas dezenas de grandes artistas que tinham iluminado os anos 10e 20 alemães.
NA União Soviética (um pseudónimo da Rússia e respectivas colónias) o poder não arriscou. Fechou a arte nova a sete chaves, baniu os livros das bibliotecas e tratou exemplarmente os autores confinando-os exilando-os ou eliminando-os sem grande maçada e muito menos processo jurídico.
Ora, agora, um senhora comissária não sei bm de quê, veio declarar a quem a quis ouvir que a arte e a cultura russas estavam a sofrer tratos de polé por todo o mundo. Artistas e criadores perseguidos, contratos rescindidos, livros retirados do mercado quando não destruídos, acordos entre museus desfeitos, enfim um auto de fé tremendo e sem precedentes.
Ora, se é verdade que, em certos meios se cancelaram espectáculos de artistas por estes serem personagens próximas do Kremlin, se, de facto se despediu um director de uma prestigiada orquestra alemã (pelos mesmos motivos, aliás) não menos verdade é que a grande maioria das temporadas musicais não sofreu cortes nem alterações, que as editoras continuam a publicar os grandes clássicos russos de sempre e que, por exemplo, e localmente, em Lisboa se dê início a uma grande temporada de celebração da música russa!
Ontem ou anteontem a RTP2 passou um filme russo (de resto medíocre ou apenas sofrível) sobre a resistência russa em Estalinegrado e o canal internacional de música “ARTE” esteja desde o início do mês a transmitir óperas russas...
Também, ontem, a televisãoo mstrou uma reportagem sobre o abraço comovido de duas intérpretes (uma russa e outra ucraniana) de “Aida” acabada de apresentar.
Estamos pois, mergulhados em pleno delírio: o da perseguição da cultura russa, da de sempre, obviamente. E a pobre população russa, desprovida autoritariamente de redes sociais, de canais de televisão estrangeiros, vê-se eventualmente à mercê desta gente que mente com quantos dentes tem e pretende (e se calhar consegue) exacerbar o sentimento patriótico, justificar uma “intervenção especial” cujo fim é evitar uma agressão (!!!) e libertar (uma população aterrorizada por quadrilhas neo-nazis, anti russas e anti igreja ortodoxa).
Claro que há uma minoria que, por ser jovem, culta e receosa do que lhes poderá cair em cima, que se exila pelas fronteiras que ainda permanecem abertas (desde a Finlandia até à Quirguizia, à Arménia ou a Geórgia). É a esse auto-exílio que Putin chama “purificação” da Rússia que aliás será aumentada pela repressão interna contra os que, mesmo poucos mas corajosos, se manifestam nas ruas.
A hora poderá mudar entre hoje e amanhã mas a hora dos russos essa manter-se-á tão igual e pesada como a de ontem.
na vinheta: obra de Kazimir Malevitch. Curiosamente, e por mero acaso, Malevitch nasceu em Kiev mas trabalhousempre entre Moscovo e S Peersburgo onde morreu, ainda jovem, pobre e hostilizado pelas autoridade e pelos donos da cultura dita soviética.