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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

au bonheur des dames 481

d'oliveira, 01.04.22

A barreira dos oitenta

mcr, 1 de Abril 22

 

Sou o pior amigo de aniversariantes que existe à face do planeta, digamos da europa, de Portugal enfim de Coimbra. Porém, sei lá porque razões, nunca esqueço dois aniversários. Um, por óbvias razões: calha a 29 de Fevereiro e é o do poeta e grande amigo António Lopes Dias que colaborou neste blog. Claro que só lhe telefono de quatro em quatro anos para os cumprimentos da praxe. De quando em quando lembro-me e lá desfiamos um parlapié que continua numa ida minha ao café perto de casa dele para prolongar uma conversa começada em finais de 61. Fomos companheiros de toda uma série de pequenas aventuras políticas e culturais, auspiciosamente começadas na cadeia de Caxias em 62por via da crise académica. E juntos percorremos a via dolorosa da “oposicrática”,  sempre próximos, sempre na brecha. Companheiros de escritório, advogados de estudantada que mijava fora do penico, colegas mais tarde na desvairada dança das instituições de Segurança Social,  Agora, rosnamos diante de filhos e netos, discutimos poesia (que ele cultiva com elegância e notória qualidade) e por cá nos vamos entretendo. O segundo aniversariante a que nunca falho é o Pedro Mendes de Abreu, uns meses mais novo do que eu e que quase fez o  mesmo percurso, desde o CITAC até Caxias, estância para onde a previdente polícia política o enviou ao mesmo tempo que eu. 

O Pedro é um dos casos mais curiosos da política coimbrã de sempre.  Órfão de pai desde cedo, tomou as rédeas do cinema Avenida (juntamente com a mãe, a notável Judite Mendes de Abreu) e aquela casa esteve sempre aberta à cultura citadina (Cine clube e festivais de teatro), à Academia  e à política oposicionista. O “Avenida” foi o palco único e central de toda a actividade democrática enquanto durou o Estado Novo. Casa aberta a todos os que se opunham à tirania, foi tema constante de denúncias policiais, dali partiram manifestações, ali se produziram tremendos comícios, ali muitas vezes estivemos mais ou menos cercados pelas “forças da ordem” . E o Pedro (mais o António, militante estudantil e eficaz) sempre impávido, calmo  e solidário. Por trás de ambos, a mãe Judite, figueirense atrevida, que começou por ser notada por, num arroubo de estudo e inteligência, se ter formado simultaneamente em Direito e Germânicas, usando na pasta as fitas de ambas as faculdades. Nunca fez Direito e as autoridades rancorosas nunca lhe permitiram dar aulas no ensino oficial.  Com a liberdade ainda teve tempo de presidir a duas Câmaras Municipais , a da Figueira primeiro e depois a de Coimbra, como eleita pelo PS. 

Ainda há uns meses citei aqui um livro sobre um informador da PIDE (excepcional, pela quantidade e qualidade de informação prestada) que a apontava como um verdadeiro “perigo público”. E escandaloso pois já vinha de uma família  (os Águas Pinto) com pergaminhos democráticos. E ainda por cima, queixava-se a criatura mesquinha, ela “era rica”. É verdade que algum dinheiro ganho suadamente tinha mas também é verdade que nunca faltou por sua parte apoio a quem perseguido pelo regime precisou de ajuda. Aliás Judite Mendes de Abreu foi,  desde a primeira hora, membro da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos. 

Ora hoje, pela manhã, lá liguei para o Pedro para o abraço do costume e a relembrar dezenas de anos de amizade. E o malandro a informar-me que alguns vários amigos comuns não tinham conseguido chegara esta barreira difícil e penosa dos oitentinhas. Entre eles o Vasco Pinto Reis, que fez parte do pequeno grupo de miúdos que, todos os verões, disputava um interminável campeonato do mundo de futebol na praia  ancha da Figueira. Também das mesmas ou parecidas aventuras, também formado em Direito, o Vasco foi um dos que iniciaram a carreira de administradores hospitalares, dos que abriram caminho a tantas coisas, entre elas ao Serviço Nacional de Saúde.

É que a História, de H grande, faz-se de pequenas  muitas histórias com gente dentro, gente que se fez à estrada, que cerrou os dentes, que foi à luta, que persistiu. Gente anónima excepto para quem a conheceu e que, à minha pobre e frágil maneira, vou celebrando e recordando.

Por vezes, sinto-me só e desamparado, com um longo cortejo de amigos desaparecidos que os anos já são muitos e a lei da vida é mesmo esta. Porém, a melancolia desvanece-se quando os lembro jovens e inteiros, nesses anos de lume e de coragem a fazerem, quase sem o saber, o país que somos e em que vivemos. E espero que os vindouros saibam ser dignos deles...