Au bonheur des dames 485
Onde votar?
mcr 30 de Maio 2019
A pergunta mais lógica, sobretudo em se tratando de votação para o Parlamento europeu, seria, “votar porquê?”.
Não sou um federalista europeu, muito menos um fanático da pátria, sequer da língua materna, mas algo muito fundo em mim, atira-me para o desconsolo deste meu sofrido país, desta gente rude e pobre, deste mar sempre ameaçador, desta terra sáfara que “eppure si muove”
Sou, já o disse um par largo de vezes, “um pobre homem” de Buarcos, como o meu querido Eça o era da Póvoa de Varzim (isto quando não se considerava um “peixe da ria de Aveiro” onde provavelmente passou os melhores tempos da sua infância desamparada).
Sei que dito desta maneira, a coisa soa a artificial. Nunca nos devemos socorrer de uma citação literária seja ela de Eça, de Homero de Dante de Cervantes ou de Rabelais, só para citar paixões imensas e antigas. Todavia, para onde quer que me vire, é Buarcos, a escola (oficial) dos professores Mourinha e Cachulo (que Deus os tenha em santa glória), a praia, os botes, as lanchas, as bateiras (e algum buque...), varadas na areia, as redes a secar, os meninos de tamancos, as mães com os seus aventais domingueiros, os pais em passos estugado a caminho da doca das traineiras com o foquim no braço, a ronca dos dias de nevoeiro, a espera ansiosa dos barcos de regresso que tentavam passar a barra fintando as ondas e a morte, o dia da chegada dos grandes lugres bacalhoeiros (Jesus, que alegria, aquilo era o fim de meses e meses nas águas frias de Saint John, homens metidos em dóris minúsculos a apanhar o peixe à linha, dentro de um espesso nevoeiro e um mar generoso mas frio. E era uma paga melhor, não digo a abundância, que isso não era para os de Buarcos mas apenas um pouco mais de dinheiro e um pouco menos de pobreza. Era a época em que iam lá casa pagar ao meu pai, as consultas, as visitas domiciliárias e a atenção, sobretudo a atenção que o médico lhes reservava. “Toma lá estas amostras, leva um mata borrão para o teu filho...”
Eu era o filho do senhor doutor, o que usava sapatos, aliás um valente par de botas de atanado que resistiam a tudo e durante algum tempo me foram úteis para me defender dos maiores que eu era o mais novo e “o inimigo de classe” mesmo se naquela terra mágica entre mar e serra não houvesse nenhum discípulo do senhor Marx. De barbas só os santos, especialmente o S Pedro, padroeiro de pescadores e mesmo esse menos importante que a Senhora da Boa Viagem a quem se encomendavam todos logo que punham pé num barco.
E não é de menos insistir na santa porque nas terras do litoral, em que os homens estão as mais das vezes ausentes, são as mulheres que governam, pagam as contas educam os filhos e vendem o peixe.
Mas não era disto que eu queria falar, ou então era, que isto de votar, de escolher, vem desse tempo em que se não votava, não se escolhia. Vem daí a recusa daquela vida dos outros, muito “safanão a tempo” apanhei logo que cheguei à idade da razão, alguma hospedagem gratuita em Caxias e afins, alguns medos, alguma cólera, uma pouca de esperança e amigos e companheiros até hoje. Votar significava muito, e essa aventura começou naquele dia de Outubro de 69 em que finalmente a “Oposição” foi às urnas. Não que esperássemos ganhar ( e não ganhámos, claro) mas apenas para nos contarmos mesmo se, por toda a ordem de razões, muitos não estivessem nos cadernos eleitorais. Fui fiscal na mesa eleitoral onde votei e isso, também isso, ficou registado pela polícia e, em seu tempo, constou de mais um processo (e foram 14 se não estou em erro) da pide/dgs contra este vosso envelhecido cronista.
Por isso nunca perco a ocasião de votar mesmo se, nos últimos tempos, as opções são o que se sabe. Voto, voto furioso, voto em branco se for o caso (e foi) mas a abstenção, os tais quase 70% não me contam no seu número.
Vim de Lisboa onde fui ver a família e sobretudo a minha Mãe, numa carreira para chegar antes do almoço à mesa de voto na escola para onde há trinta anos me empandeiraram. Como fui dos primeiros a registar-se como eleitor andei já por vários sítios todos longe do local onde moro. Desta feita, porém, quando me apresentei na “escola Maria Lamas” e na secção entre o fim dos Manuéis e o principio das Marias, dei com o nariz na porta. A senhora que me viu os cadernos eleitorais, surpreendida com a minha irritação e com a ameaça de não votar, atirou-me com as filas que em África, à torreira do sol, esperam horas e horas. Tive que lhe dizer que votava há mais anos dos que ela tinha de idade e que me irritava mais esta modificação (a 5ª ou a 6ª!!!) do meu local de voto. Lá me explicaram que agora vigorava o “critério da proximidade”, local de morada/ local de voto. Aí zanguei-me a sério pois que vizinhos meus recentes (de há 10, 15, 20 anos) já votavam aqui ao lado enquanto eu, graças a ser mais velho e mais pressuroso na inscrição como votante tinha que ir para cascos de rolha. Parece, no entanto, que desta feita, é para valer: irei votar a duzentos metros da minha casa, da casa onde vivo desde 1976! A CNE ou lá quem distribui o eleitores lá se lembrou deste critério muito mais justo e ajustado do que o do número do falecido cartão de eleitor, uma inutilidade (mesmo como precaução) que só chateava o seu portador.
E lá votei, em menos tempo do que demora esta crónica, mesmo se os meus projectos de vida e as minhas esperanças quanto às actividades do Parlamento Europeu sejam muito, mas muito, moderados.
Parece que, por cá, anda muito boa gente entusiasmada por não haver “populistas”, nacionalistas, direita extrema e não sei que mais. Sempre direi que de facto não aparecem mas também não aparecem sete em cada dez eleitores. Desinteresse? Não se sentem representados? Estão por tudo? Mais cedo ou mais tarde é daí que sairão os populistas, os nacionalistas , os que não conseguem sentir-se representados.
A noite eleitoral foi o que se sabe e o que se esperava. Uns cantam vitória, outros negam a derrota. Nos primeiros, aparece um cataplasma chamado Pedro Marques que andou todo o tempo ao colo do dr Costa. Nos perdedores bom teria sido que no PPD alguém se lembrasse da deputadagem que votou aquela borrada (e aquela burrice) sobre os professores. Até esse momento PPD e PS iam juntos e colados. Daí até hoje vão dez pontos de distância...
Depois há o PC. Esses nunca perdem. Aquilo de ontem foi uma pequena contrariedade dialéctica no caminho para a construção do socialismo e da sociedade sem classes sob a égide do proletariado. Ou o “proletariado” morreu ou foi todo para a praia ou é todo, ou quase, “lumpen” ou o imperialismo monopolista e capitalista estabeleceu uma ditadura férrea sobre os trabalhadores e as classes populares e as impediu de justamente mostrarem a luminosa via dos “amanhãs que cantam”. A culpa é seguramente dos outros, da Direita (qual? A do PS, a do PAN ou a do BE?) jamais da “análise concreta da situação concreta” como pretendia o camarada Ulianov que no século foi conhecido por Lenin.
Por uma vez sem exemplo o camarada Jerónimo não pode acusar a dr.ª Cristas ou o dr. Rio pois esses perderam redondamente, vítimas da sua parva ingenuidade e dos seus obtusos parlamentares que cegos pela desrazão entenderam juntar os seus preciosos votos aos da Esquerda radical mesmo quando esta e o PS (convém não esquecer a votação deste quanto às medidas de salvaguarda propostas pelos primeiros) derrotaram as suas condições. Ainda hoje estou por saber se o PS tinha perfeita consciência do seu voto e sobretudo dos efeitos dele. De todo modo, a minha convicção é que o PS agitou um trapo vermelho e o CDS e o PSD carregaram que nem touros alucinados. Em boa verdade, não eram touros mas apenas uns tristes patos marrecos).
Entretanto, acabado o futebol e ainda longe das férias, terá começado a campanha eleitoral. Costa faz contas e os seus cabos eleitorais já pedem uma maioria absoluta. O PPD tenta limitar os estragos enquanto que do CDS que se julgou maior do que a sombra nada transparece. Talvez esperem ter mais votos que o PAN ou o PC (eu nunca digo CDU porque os verdes daquela banda são fundamentalmente vermelhos por dentro. E úteis: votam sempre, sempre, ao lado do povo, ou daquilo que o PC entende por povo). O BE espera melhorar a sua representação parlamentar e, provavelmente, alguma razão lhe assiste: é mais atraente do que o PC, tem uma base de apoio jovem e educada e anda num extraordinário número de malabarismo circense tentando convencer o PS a chamá-lo a um acordo.
Aqui para nós, como se ninguém nos ouvisse, este tipo de textos sobre a política imediata desenvolvida na pátria dos heróis do mar, nobre povo, nação valente (narizes de cera que serviram para protestar contra o Ultimato britânico e aliciar gente para o nascente partido republicano) deixa-me deprimido e com a desagradável sensação de parecer ainda mais velho do que na realidade sou, e já não sou, ahimé, nenhuma novidade. Todavia, persisto, contrariando o meu lado de velho do Restelo, a afirmar como no quadro maravilhoso de Rouault “demain sera beau disait le naufragé”.
*na estampa: “demain sera beau disait le naufragé”, gravura 11ª de Miserere (série de cerca de 50 gravuras publicada nos anos 20) (Georges Rouault , 1851-1958)