au bonheur des dames 489
Ai aguenta, aguenta...
(a culpa é sempre do povo ingrato)
Mcr (Junho, 2019)
Uma secretariante estadual criatura entendeu vir anunciar a um grupo parlamentar que as filas de cidadãos à porta das repartições que tratam do cartão de cidadão eram culpa única desses mesmos cidadãos, perdão súbditos.
De facto, sempre segundo a surpreendente senhora, são os cidadãos que, ao juntarem-se em magote à porta do serviço com horas de antecedência em relação ao horário de funcionamento, fazem com que o serviço entupa.
Parece que, quando se começam a distribuir as senhas para atendimento, estas se esgotam num ápice e fazem com que cidadãos mais retardatários que entendem só dever procurar a repartição quando esta oficialmente abre ao público batam com o nariz na porta.
Ou seja, os cidadãos que, por imperiosas razões julguem ser seu dever renovar o documento de identificação, são os responsáveis pelo naufrágio. Eu não posso estar mais de acordo com a governante personagem. Os cidadãos são uma chatice medonha para quem carrega aos ombros a pesada cruz do Estado. Se não houvesse estas criaturas madrugadoras e sofredoras tudo se passaria no melhor dos mundos. E sem bichas!
Provavelmente também não haveria necessidade de passar o cartãozinho. Aliás, países há, não dos menores, que não impõem qualquer cartão aos seus indígenas. Todavia, neste jardim ocidental, neste “torrãozinho de açúcar” o malfadado papelucho é preciso por tudo e por nada. E não há documento que o substitua, mesmo se vier munido da fotografia do resinado íncola interpelado por uma qualquer (e são múltiplas...) autoridade civil religiosa militar ou outra, por exemplo o marçano da loja onde se vai por dois quilos de batatas e um litro de azeite.
Há neste país prodigioso ( e não será um prodígio o facto de enquanto meia europa sufoca encalorada, por cá sopre uma doce brisa primaveril que nos permite passear de cabeça descoberta e sem recear uma insolação?) um extraordinário hábito e que é este: a culpa é sempre dos outros, nunca nossa Ou então é o destino cruel, o fado antigo, algum malefício ou praga encomendados contra nós.
A ideia de que a passagem das quarenta para trinta e cinco horas de trabalho (uma justa medida há muito reclamada pelo povo trabalhador), o facto de haver uma crónica falta de pessoal em muitas repartições públicas, a insuficiência de meios técnicos adequados, as famosas cativações que nos irão posicionar num lugar cimeiro do deficit público – os melhores entre os melhores - é coisa que não perpassa pela ment iluminada da senhora SecretáriaBem pelo contrário: é a populaça ignar e vil que no seu descontrolado afã de obter um documento se amontoa num caos sem precedentes à porta dos Serviços exigindo em medonho murmúrio o documento de que, com descaramento inaudito, diz ter necessidade.
Isto, essa mole plebeia e mal educada que se levanta noite fechada para, ameaçadora, vir perturbar a paz pública, tem um único fito: perturbar a excelente governação da pátria que a pariu e levar a cabo uma campanha canalha contra o partido no poder, os seus amigos (ou amigalhaços? Ou ex-amigos?) com vista a fazer a nação valent e imortal voltar atrás, aos tempos da troika malvada, do dr Passos Coelho, agente do conservadorismo e relutante saudoso de tempos ainda mais antigos.
Não se percebe, porém, como é que uma outra Secretária de Estado, entendeu desmentir a primeira (caridosamente afirmando que as palavras desta tinham sido mal entendidas, fora do contexto, como de costume.
Em que é que ficamos?
Nem de propósito
Tina acabado a crónica acima quando a minha Mãe me pediu para ir levantar algum dinheiro a banco. A excelente senhora que está a muito poucos passos do 1º centenário não usa cartão e, de resto, por dificuldade de locomoção, prefere mandar os filhos levantar-lhe o dinheiro que precisa para pagar as empregadas e fazer as compras da casa.
Desta feita, quando cheguei à agência havia uma bicha de cinco ou seis pessoas diante da caixa. A pessoa que lá estava despachou um cliente e zarpou para outro local para entregar dinheiro a uns homens fardados de algum transporte blindado. E chegaram, entretanto, mais pessoas que resignadamente se dispuseram a esperar. Dez ou quinze minutos depois os seguranças lá partiram ajoujados, penso eu, ao peso das notas acondicionadas numas maletas de aspecto robusto. E a bicha começou a mover-se. Quando fui atendido e antes sequer de perguntar o que se passava, o caixa entendeu explicar-me que havia dois colegas de férias, que, de qualquer modo, a equipa da agência era reduzida, que o banco tencionava encerrar cem balcões (!!!) e que nós, os usuários e depositantes, tínhamos de “compreender”. Retorqui-lhe que o banco não é o Registo civil, nem nós os solicitantes de cartão de cidadão. Que se havia pouca gente que arranjassem mais. E que, à falta de podermos trocar duas amabilidades com o Presidente do banco ou sequer com o gerente que está sempre em lugar incógnito, era aos funcionários que exprimíamos a nossa indignação. E que se ele se achava inocente que informasse quem de direito, nem que fosse apenas o sindicato.
Tudo visto, despois do descaso dos poderes públicos, as instituições privadas , ou algumas, também acham que os utentes são os culpados do mau funcionamento e, sobretudo, uns chatos que só sabem resmungar e não apreciam como deviam o facto do banco generosamente lhes guardar o dinheiro que aí depositam.
* O título refere uma frase de um senhor banqueiro que interrogado sobre as dificuldades do povo e da sua (in)capacidade para as aguentar respondeu lapidarmente. E tinha razão...