au bonheur des dames 498
Ser homem também tem as suas vantagens
mcr, 25-5-22
Era ainda mais ignorante do que hoje sou mas naqueles anos sessenta gozava de um par de vantagens: era curioso, atrevido, não me repugnava perguntar e, apesar da minha juventude, sabia ouvir. Mais, tinha gosto em ouvir e em aprender.
E, de certa maneira, a época era propícia a esse pequeno exercício de humildade: Havia quem não se importasse de ensinar, quem até achasse graça a um rapazola que queria saber e se dispusesse a aturar a criatura atrevida.
Nesse numeroso grupo de mestres de vida e de cidadania, destacavam-se alguns cavalheiros de Coimbra que tinham porta aberta para a estudantada: Paulo Quintela, Luís de Albuquerque, “Fred” Fernandes Martins, Orlando de Carvalho e Joaquim Namorado. Isto para não referir o meu pacientíssimo tio Marcos Viana, um professor licenciado em Românicas e que era um prodigioso leitor e entusiasta do surrealismo. Dele aprendi muito mais do que hoje recordo, pois, MV, um tímido bon vivant figueirense, desempenhava com aprumo o papel de intelectual de cidade de província, nunca troçava da ignorância que se expunha e tinha reais qualidades de professor.
A ele devo boa parte do meu gosto pela História pois passou-me para a mão uma gigantesca quantidade de fascículos da “História Universal” de Macedo Mendes, uma louca iniciativa de um professor de Belas Artes que convenceu as edições Cosmos a publicar aquele monumento, 12 volumes a 500 pagines cada, ilustrações excelentes e, para mim, a primeira História que trazia o habitual europeu mas também as civilizações que nenhuma outra carreava, da Índia à China, do Japão à Oceânia e Crescente fértil .
(este esforço editorial nunca chegou ao fim pois não coube nos doze previstos volumes deixando as coisa por volta de inícios do século XVIII. Muitos anos mais tarde, a prima Maria Manuel ofereceu-me os volumes do pai e eu, com sorte e muito trabalho, juntei-lhes os que faltavam. Tive mesmo a sorte de encontrar as capas de editor , que a coisa era publicada em fascículos)
Luís Albuquerque, um dos maiores nomes da História da Náutica portuguesa e mundial, perdeu longas horas e explicar-me coisas únicas e meteu-me mais esse vício. Paulo Quintela era um conversador admirável e um tradutor de mão cheia. Deixou um enorme espólio de autores alemães traduzidos de Goethe a Rilke, de Holderlin a Trakl, de Nietzsche a Brecht. A ele se deve a criação do Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbrra, as encenações de Gil Vicente e do teatro clássico grego. Fernandes Martins, amigo do meu pai era um geógrafo de grande prestígio, professor universitário, anarquista q.b. e um homem profundamente empenhado na luta pela liberdade. Joaquim Namorado, matemático e poeta de adiante falarei dirigiu durante dezenas de anos a “Vértice”, manteve-lhe a possível independência e foi, de certo modo, a alma do neo-realismo poético. Resistente, como os anteriores, corajoso, meteu-me o vício da leitura de revistas, revelou-me poetas de todo o mundo mesmo alguns que em nada seguiam o mesmo ideário literário-político. Finalmente Orlando de Carvalho, jurista, católico progressista, amador de cinema foi outro animador cultural brilhante e alma do Cineclube de Coimbra.
Houve outros claro, antes e depois (e neste depois, agigantam-se duas figuras, Jorge Delgado e Rui Feijó que acompanhei até ao fim e de quem guardo as melhores e mais gratas recordações.
Sei que esta não é a primeira, sequer a décima vez que os cito mas eu, para usar a expressão de bom amigo, colega e psiquiatra, “sou cão que conhece dono”. Devo a estes homens e a um largo par de outros, 99% do que sou ou do que penso.
Ora estas figuras surgiram-me do doce nevoeiro que os anos vão criando, por uma questão, pelos vistos, actual.
Discute-se, agora, o problema da incidência de dores menstruais no desempenho laboral das mulheres. Sobretudo o caso que não é rato destas dores serem passe a expressão realmente dolorosas e impeditivas de levar a cabo as tarefas quotidianas.
Isto que assune foros de actualidade foi algo que me ficou de um par de conversas tidas há cinquenta/sessenta anos com Joaquim Namorado que afirmava que num exame uma aluna com dores menstruais ficava sempre prejudicada quer em termos classificativos quer mesmo, em casos extremos, em termos de êxito escolar. Foi tão impressivo que nunca mais esqueci as suas palavras que, na altura, e ao que sei, eram absolutamente incomuns. Na ´época tinha amigas que, durante o período passavam francamente mal e isso impressionou-me o suficiente para, mais tarde, e numa instituição que durante anos dirigi, tivesse tomado uma série de iniciativas de protecção às mães trabalhadoras, criando um infantário, um jardim escola, uma creche enfim, uma série de instrumentos que lhes aliviasse um pouco as preocupações do dia a dia. E não foi coisa pouca, porquanto tudo o que era órgão de tutela veio meter o focinho inquisidor, pedir explicações, justificações que consegui tornear explicando a um ministro, burro mas vaidoso e com ambições políticas, que com aquela medida evitava um gigantesco número de faltas e com isso poupava dinheiro. E acrescentava, num sussurro ao ouvido do político que dissera às centenas de subordinadas que a ideia fora dele ministro, atento e compassivo e muito dado ao social, e não minha. O homem subiu de peru a pavão, grunhiu um aplauso e quando visitou a minha instituição foi por recomendação sigilosa minha alvo de uma pequena homenagem das beneficiadas que, aliás sabiam bem o que se passava e comparavam a sua sorte com a de milhares de colegas de instituições similares onde estes progressos justíssimos e necessários não tinham chegado.
É claro que isto não abrangia os problemas do período menstrual mas eu sempre fui reformista e sabia de ciências certa que Roma e Pavia não se fizeram num dia. Apenas me espanta um facto: mais de quarenta anos depois e só agora começam a despontar interrogações, dúvidas e propostas sobre algo que, a meus olhos é fácil de resolver. Ou nem tanto como já vi afirmado por quem teme que os sinais evidentes de dor menstrual diminuam a luta pela igualdade salarial.
Arre!
* na vinheta: a incompleta “História Universal” de Macedo Mendes, ou seja mais cinquenta e dois centímetros de estante