au bonheur des dames 516
Pergunta pouco inocente
Mcr 28-7-22
A propaganda oficial dá um retrato generoso de Portugal: bom clima, preços baixos, segurança acima da média, população cordial. Acresce que o país conta com algumas comunidades estrangeiras de que não há quaisquer queixas. A começar pelas duas comunidades asiáticas que, tudo indica, estarão perfeitamente integradas.
Depois seguem-se os brasileiros e várias comunidades europeias de que também não constam problemas de adaptação ao país. Finalmente, e sobretudo na grande Lisboa e no Algarve largos milhares de africanos provenientes maioritariamente das ex colónias (sobretudo Angola Guiné e Cabo Verde). As populações negras ou afro-descendentes não são novidade num país que teve colónias e, muito antes disso ser uma realidade, recebeu milhares de escravos.
Dessa primitiva população negra não restam quase traços tirando alguns nomes de ruas (rª das Pretas, Rª do Poço dos negros etc...). A imensa maioria dos escravos vindos a partir do sec XVI foi-se miscigenando e desapareceu na população dita branca. A partir de meados do do sec. XIX nem sequer com o começo da colonização mais intensa das colónias se pode falar de afluência de negros a Portugal. Foi fundamentalmente a partir de 74 com a descolonização que, subitamente, tudo mudou: na grande massa de “retornados” não havia apenas colonos brancos ou mestiços mas também muitos negros que por razões diversas escolheram emigrar para Portugal. com o incremento das guerras civis na África ex-portuguesa aumentou o fluxo de africanos e inclusivamente o de emigrantes oriundos de outros países africanos. Sempre na zona de Lisboa e arredores e um pouco mais a sul. A este grupo há que acrescentar uma forte comunidade cabo-verdiana que apenas fugia da falta de trabalho, das secas sucessivas via em Portugal um meio de atingir outros países da UE. Se refiro essa comunidade é porque tem traços diferentes das provenientes de outras ex-colónias (Cabo Verde é fundamentalmente um país mestiço e os seus naturais possuem um crioulo desenvolvido que disputa a primazia a ao português oficial).
De todo o modo não é a caracterização dos africanos e “afro-descendentes” que dá motivo a este post.
De facto o que me irrita (para além da presunção esparvoada e da pobreza ideológica) é o tipo de fatwas que alguns talibans (e talibanas) disparam sobre quem não partilha as absurdas teses da apropriação cultural de valores africanos por europeus. Em primeiro lugar, porque dada a colonização a África que hoje sobra sobretudo a urbana (e as zonas urbanas abrigam, hoje, em muitos Estados africanos mais de metade da população) já tem uma gifantesca percentagem de traçs distintivos legados pelos europeus que normalmente as fundaram. Depois, os próprios Estados agricanos nas suas actuais fronteiras são um produto da colonizaçãoo e da Conferência de Berlin, com todos os temíveis defeitos e desastrosas consequências daí resultantes. As elites africanas são cada vez mais produto de um sistema de ensino ocidental o que com a “língua oficial “ de cada um desses países é algo de profundamente mestiço e de apropriação cultural de todo um sistema ocidental (ou europeu) ali introduzido.
Tenho a convicção (diria mesmo a certeza absoluta) que os filisteus (homens e mulheres) que execram um penteado africano numa mulher branca não sabem sequer dez palavras dos maravilhosos e robusos vernáculos africanos que agora só circulam entre os muceques mais recentes e nas aldeias do interior ou, pelo menos, afastadas da influencia da cidade. Trata-se do maior, mais grave e mais profundo desastre cultural que afecta praticamente toda a África subsaharina.
H´por aí nas universidades portugueses cursos de “estudos africanos”que ensinarão tudo o que quiserem as imaginações mais delirantes e nada das línguas originais (e são umas centenas, mesmo se muitas sejam aparentadas) de África.
Aliás, em Portugal, que eu saiba, existirão cerca de duas dúzias de dicionários de vernáculos africanos, todos em edições mais que esgotadas devido ap cuidado das missões pois o conhecimento das línguas locais era imperioso para a “difusão da fé”...
Do contacto que mantenho com muitos intelectuais africanos (provenientes das ex-colónias portuguesas - eu odeio a palavra, aliás sigla, PALOP - fiquei com a desolada ideia que –se falam e escrevem um excelente português – são absolutamente incapazes de perceber duas frases na língua dos seus antepassados.
Ora os convertidos à nova teses da “apropriação cultural” fazem tábua rasa disto e, muito provavelmente, também pouco ou nada saberão dos mitos fundadores, da história pregressa africana, das religiões e de tudo o resto. Isto, e sempre, no que toca às ex-colónias portuguesas.
Depois, o que ainda é mais curioso, nota-se que uma boa parte, eventualmente a maioria destes anti-racistas, anti-coloialistas e anti imperialistas de fresca data não tem nada a ver com os grupos independentistas que lutaram de armas na mão contra o regime colonial, ue povoaram as prisões desde o Tarrafal até à Machava e que, no “melhor” dos casos, apenas foram deportados para Portugal. São filhos e netos de Fanon, um antilhano psiquiatra, marxista e sartriano, licenciado por uma universidade francesa e cidadão francês. que de África apenas terá conhecido bem a Argélia (mesmo se passou brevemente por mais dois ou três) o que é, convenhamos, pouco, muito pouco
Dois amigos com quem discuti parte do aqui deixo, entendem que se deveria acrescentar que muitos dos novos talibans seriam mestiços, isto é pessoas entre dois mundos e olhados com eventual desconfiança por ambos. Não considero isso importante ou, pelo menos, suficientemente importante. É que me vem sempre à memória algo que Richard Wright , um grande escritor nego e americano ocntava da sua visita a um país africano: quando tentou contactar com aldeões negros este afirmaram que ele era branco. Estupefacto, RW perguntou porquê: responderam-lhe que ele usava óculos e se vesta como um branco. A cor negra era apenas o resultado do inclemente sol tropical!...
Depois a ideia da “apropriação cultural” impõe dilemas tremendos. Deverão os africanos ler Alexandre Dumas, mulato e romancista francês ou relega-lo-ão para o limbo dos ingénuos. E Horace Silver, esse portentoso jazzman cabo-verdiano? Vinicius de Morais que se intitulava o “branco mais negro do Brasil era o quê- um gatuno da poesia e música afro-braileira. De resto, o jazz é música negra mesmo quando tocado num piano instrumento seguramente “branco”?
Desconheço se nos povos indígenas das Américas do Sul e Central também há cultores de burrice grotesca E no Ásia? Será que do seio das grandes culturas hindus, chinesa ou japonesa surdem também inquisidores dfascizantes a proibir o uso da cabaia, do sari, do kimono?
Andarei eu a apropriar-me culturalmente dado ser possuidor de uma colecção de máscaras africanas, de gravuras japonesas, de umas centenas de obras de ficção e poesia africanas, bem como de outras de origem asiática? Dever-se-á proibir a música de Dave Brubeck um branco e pianista de Jazz*? Serão os grandes dançarinos negros de ballet clássico 2apropriadores culturais? E as grandes cantoras líricas negras, poderão cantar óperas de Rossini ou Verdi?
Em resumo, esta imbecil guerra de fanáticos “afro-descendentes” se, porventura, tivesse alguma hipóteses de êxito criaria até cá ghettos infames bem piores do que certos bairros onde emigrantes de fresca data se acolhem. Com todas as consequências que se conhecem, violência radical incluída.
Na vinheta: uma parede da casa de um “apropriador cultural português:.Da esquerda para a direita e de cima para baixo Domingos Pinho (cera) máscara Songhie (RD Congo) ana Maria (acílico) Diogo de Macedo (gouache) , Dario Alves (acrílico) José Rodrigues (tinta da China), António Modesto (aguarela), Bronze com soldado português (Benin) A Modesto (acrílico ), máscara Naga (Guine Conakri)
a 3ª mácara (acontar de cima é Dogon (Mali)