au bonheur des dames 550
Uma ovelha negra contempla o vasto mundo
mcr, 27-11-22
uma velha e muito querida amiga enviou-me a vinheta que aí está por ocasião do (mais um e já lá vão muitos, demasiados) meu aniversário.
Só ela com a sua finíssima ironia, a paciência sábia que, a par de uma apurada inteligência e cultura, sempre a distinguiu é que encontraria um desenho que tão bem me vai.
Ovelha negra, sempre a protestar, nunca rancorosa mas não deixando passar a canalha (que aliás passa à mesma, indiferente ao dedo acusador, à língua afiada mas enferrujada, à mão escrevente) que viceja por rodo o torrãozinho de açúcar (não sou Eça, nem lhe chego ao calcanhar mas cito-o sempre devota e risonhamente), eis o que eventualmente serei, adqui neste canto há mais de uma dúzia e meia de anos.
Estava eu, todo contente com o apodo concedido pela Maria A. quando me lembrei que aqui no Porto, perto de alguns (cada vez mais raros) alfarrabistas há uma loja de lãs, frequentada pela CG, intemerata tricotadeira, agora especialista em meias de cano alto, e que se chama justamente “ovelha negra” e é propriedade de uma amiga dela.
Como se atreve? E logo numa zona que conheço desde menino e moço dos meus tempos de prisioneiro num colégio (onde herdei o número do meu pai que também por lá penou) de onde, com absoluto risco, fugíamos por uma balaustrada mesquinha de um segundo andar levando no séquito um rapaz que já ia nas catorze dioptrias mas não queria dar-se por vencido. À frente e atrás, rezando ou praguejando iam os dois mais fortes da trupe que se evadia, tentando evitar uma queda que seria sempre grave. Depois entravamos por uma janela da sala de música, atingíamos um corredor na zona dos quartos dos professores, descíamos ao pátio alcançávamos os recreios que atravessávamos numa corrida entre gatgalhadas, saltávamos um muro que dava para o quintal duma tasquinha, bebíamos um copo de verde rasca até dizer basta (era a portagem exigida pelo taberneiro) e saímos para o mundo.
É bom que diga que o Porto à noite, naquele ano de 1959, era uma paisagem desolada a partir do início da noite, As pessoas, tirante o cinema, saíam pouco mesmo se, como de costume, a boémia limitava-se a uma dúzia de duvidosas casas de putas, três tristes cabarets uns grupos ruidosos de estudantes que iam de nenhures para sitio nenhum mas a mocidade escolar é mesmo assim: inpecuniosa mas desafiadora.
Estas surtidas fora das grades acabou de maneira pouco gloriosa e, sobretudo ingénua: uma noite, cerca das duas da madrugada caíram uns pobres flocos de neve. Mesmo poucos era m uma sensação. Alguém, no dia seguinte, a mesa do pequeno almoço contou a insólita novidade que chegou num ápice à direcção. Os cerrados e hábeis interrogatórios a alguns elementos menos fiáveis do grupo evasor foram suficientes para se conhecer a infra-estrutura da fuga nocturna , as janelas foram fechadas com chave e a rapaziada desinquietante ficou reduzida ao dormitório onde se dobrou o número de prefeitos.
Desde esse malfadado dia fiquei a odiar nevões (no caso nevinho ridículo e inconsequente).
O colégio já passou à História, o jardim fronteiro é um parque de estacionamento, boa parte do pequeno comércio existente na praceta foi comido por um hotel e por uma esquadra de polícia. O resto da paisagem é um conjunto de montras entaipadas. E de hostels, apartamentos de aluguer de pequena duração que, ao fim e ao cabo, isto é o centro do Porto. A conta da ganância de alguns senhorios já desapareceram da zona quatro alfarrabistas, mesmo se – é verdade! – tenham aparecido três mais recentes, um dos quais mais loja de curiosidades e velharias do que livraria. E a rua a seguir está a tornar-se uma zona especializada em antiguidades ,velharias e oficinas de candeeiros. E há ranchadas de turistas que metralham tudo com os telemóveis à procura do very tipical tripeiro. Que, obviamente, está ausente em parte incerta.
Tudo isto suscitado por mais um aniversário em que me surpreenderam com uma prenda inusual: um concerto comentado da 6ª sinfonia de Bruckber. Eu conheço muito mal, ou desconheço muito bem, este autor mas assisti (ouvi) com curiosidade ao concerto mesmo se o lugar em que estávamos (2ª fila) apenas permitisse ver as cordas. Já me viciei no canal Mezzo de que sou freguês diário e por várias horas. Aí vê-se tudo que, para o efeito, as produções dispõem de inúmeras câmaras que nem sempre nos mostram o que queremos mas que são muito eficazes.
Voltando a Bruckner descobri que apenas tinha as sinfonias2, 3 e 7 que, em boa verdade, já não oiço há séculos. O comentário que ouvi, de um especialista, foi interessante mas convenhamos que é demasiada informação demasiado precipitada e, por isso, pouco eficaz mesmo se, e era o caso, a exposição fosse clara e inteligente. De todo o modo, este género de funções são para pessoas com mais ouvido do que eu o que, aliás, é fácil. Eu começo a desafinar logo no Do! Entre mim e a música há um amor mal correspondido. Adoro música mas ela, a malvada e fugidia, não me liga pêva. E, no entanto, tenho milhares de discos, o carro logo que arranca, desfia também uma de 8 pens carregadas de toda a sorte de músicas que dão para duas ou três voltas ao mundo de automóvel. Sei tudo ou quase sobre elas mas não me atrevo a trautear duas notas seguidas. Os meus amigos agradecem...
De certo modo, mereço ser a ovelha negra da vinheta, mesmo se mesmo assim, e musicalmente, isso possa ser considerado uma excessiva amabilidade...