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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

au bonheur des dames 577

d'oliveira, 10.03.23

Não há poços sem fundo, helas!

mcr, 10-3-23

 

Antes que alguma leitora me vote ao Tinhoso, quero dizer-lhe que o francês é, por razões geracionais, de leitura, de predilecção, de política... Mais de metade, dois terços talvez, da minha biblioteca é em línguas estrangeiras, mormente francês e espanhol.  De qualquer modo, não uso comummente  expressões estrangeiras. 

Curiosamente, e de origem ministerial, estabeleceram-se dois francesismos no falar quotidiano. O “jamais” sobre um aeroporto na margem sul (onde parece que afinal ele ficará, e o actualíssimo “helas” do sr Pinho  que a completo despropósito da narração das suas façanhas fiscais o usou. Que é que terá passado pela cabecinha sonhadora é um mistério que não vale a pena dilucidar. A criatura é pequena, duvido que seja tão competente quanto alguns a pintam e a sua odisseia de prisão domiciliária numa quinta onde o vinho parece não aparecer, também não merece grandes parangonas. Aguardo confiante e ingénuo que uma severa pena de prisão o mande para o calabouço por um bom par de anos mas mesmo isso não é a primeira nem a segunda das minhas preocupações.

O folhetim tem mais a ver com os fundos para as actividades culturais que umas largas dúzias de esforçados e pouco conhecidos agentes levam a cabo. Como não podia deixar de ser, nunca há dinheiro para todos. Não há e nunca haverá mesmo que o país enriqueça  tremendamente. 

Quando digo agentes culturais não refiro nem escritores, tradutores e outra gente do livro nem artistas plásticos. Estas duas categorias navegam no mar encapelado da oferta e da procura, sujeitos à lei do mercado. É duvidoso que os medíocres singrem, vendam se tornem conhecidos. É verdade que no domínio da literatura há autores de nicho, com um fiel e pequeno grupo de leitores que apenas os aguentam à tona e nem sequer lhes permitem viver só do que criam. No caso de pintores e escultores & similares a coisa ainda é mais complicada. A necessidade de ateliers é absoluta e no caso da escultura torna-se ainda mais dificultosa. É verdade que, de longe em longe, o Estado faz umas compras mas, como de costume, também estas sofrem a crítica dos que não abicham. Os júris para o efeito são sempre criticados pelos autores que não conseguem vender uma peça ao Estado. As galerias que “promovem” os artistas levam-lhes somas exorbitantes por catálogos pífios, e publicidade mesquinha. E desaparecem da circulação com quase a mesma velocidade com que morrem as empresas distribuidoras de livros. 

De todo o modo, mesmo sabendo que o gosto do público não ésempre o melhor indicador nem o mais inteligente, nem o mais crítico, a verdade é que nesta área so toca guitarra quem tem unhas. 

No que toca ao teatro, à música e à dança e na generalidade a tudo que posa significar artes do espectáculo, corre a curiosa ideia de que é ao Estado que incumbe velar pela existência e manutençãoo das companhias e grupos. Parte-se de uma afirmação de que o Estado tem a obrigação de proteger, divulgar e manter as estruturas artísticas. Com ou sem espectadores. No caso vertente, a falta de público nunca é da responsabilidade dos criadores que se exibem mas tão só da ignorância néscia das multidões que preferem a telenovela da televisão, o cantor pimba e quejandos às excelências que dominadas pela pulsão artística e pelo génio criador se esforçam por distribuir pérolas a porcos. Além do público distraído e ausente, há os meios de comunicação que não se esforçam suficientemente por propagandear as elites geniais que sobem aos palcos. 

É verdade que, em comparação com o que ocorria há muitos anos, a imprensa dita cultural quase desapareceu. Sou do tempo (a “longa noite...”) em que meia dúzia de revistas pontualmente mensais, sujeitas a uma censura bravia e castradora, viviam das assinaturas dos seus leitores. No meu caso, bastas dificuldades tinha para pagar a “Vértice”, a “Seara Nova” e “O tempo e o modo”, além do jornal diário. Curiosamente, a Direita não aguentava as publicações que ia criando que morriam ao fim de uma ou duas dúzias de meses. Sem leitores mas com ajudas ocultas do Estado. Sem censura, claro que os censores os olhavam com ternura e esperança. 

Do mesmo modo, e sempre nesses tempos temíveis, havia grupos de teatro que sobreviviam a tudo desde o TEP ao Teatro Moderno de Lisboa, Havia associações musicais que viviam das quottas dos seus sócios (lembro e so no Porto, o Círculo de Cultura Musical e o Orpheon Portuense). E havia cineclubes por todo o lado  ou, apesar de tudo, em muitas cidades, também eles autossustentando-se graças aos associados. 

Não vou debruçar-me sobre a sorte macaca que levou estas instituições, todas elas e muitas mais, ao charco. 

Nem vou sustentar  a ideia de que é ao Estado que compete financiar tudo, algo que sempre me pareceu de duvidosa eficácia, de eventual controlo político e partidário, de criação de um gosto “mainstream” (olha outro palavrão vindo das estranjas...). entre outras razões porque a actividade mecenática do estado pelo menos para as artes do espectáculo (teatro, música, dança & adjacências) exigiria fundos que a riqueza do país não tem, além de concentrar os apoios em meia dúzia de cidades grandes onde, provavelmente o público poderia pagar do seu bolso a “cultura” que lhe é proposta. 

Depois, por uma razão simples mas óbvia: a afirmação da qualidade de uma estrutura não é garantida à partida, demora anos a consolidar, e deixa (ou deveria deixar) muitos cadáveres pelo caminho. 

Por razzoes de profissão e de gosto conheci centenas de criaturas habitadas pela hubris cultural. Todavia, o talento, a qualidade (e o eventual sucesso) são doseados com imensa parcimónia. 

Sem se perceber isto, não vale a pena  sequer ler as notícias dos jornais sobre as acções que um grupo de “criadores” e de “estruturas”  arremessou contra o tímido Ministério da Cultura. Até se fala em “providências cautelares”...