Au bonheur des dames 587
“Verrá la morte...”
mcr, 21-8-23
era um grupo de meninos numa rua frente à praia, morando em casas contíguas que se conheciam desde sempre, sobretudo no Verão quando o número deles aumentava pelas férias.
O grupo alargava ou diminuía consoante a passagem dos meses quentes mas durante quase vinte anos encontravam-se ali, stessa piaggia stesso mare, crescendo quase sem se darem conta num país enevoado que pouco a pouco foram descobrindo.
Não escaparam a nada do que ocorre quando pouco a pouco os meninos se vão tornando adultos.
A vida, sempre ela, separou-os por vários destinos, a vida não cuida de manter juntos os meninos que já o não são.
Uns, mais do que outros, mantiveram todavia a recordação de mil dias à torreira do sol de Julho a Setembro, a fintar as ondas sob o olhar vigilante do senhor Fonseca e, por vezes, do Rui Amador. E tinham uma barraca só para eles quando por acaso não jogavam ao futebol ou ao mata onde as meninas eram rainhas e campeãs.
Era um grupo de meninos, ruidosos, curiosos, sonhando, porventura, um futuro na “mesma praia, mesmo mar” com uma outra geração de filhos a correr pela areia, a gritar, a rir a começar a viver.
A vida, sempre ela, afastou-os da praia da em que se conheceram, brincaram, cresceram como sempre acontece que isto de ser adulto tem outras regras outras circunstâncias que a infância, a juventude e a adolescência desconhecem. Os pais primeiro mas nem sempre que o Luís foi antes ao volante de um automóvel que seguia demasiado depressa numa estrada demasiado má, num dia demasiado aziago.
Mais tarde, muitos anos depois, ainda se encontraram um par de vezes e era o mesmo encantamento, o mesmo sorriso, os mesmos gritos como se os anos, ai os anos, tantos anos, não tivessem passado.
A praia mudou, a cidade mudou, nós todos mudámos, mas sempre que nos vemos, e vemo-nos tão pouco!, é como se aqueles meninos regressassem à mesma praia, ao mesmo mar.
Depois foi a Titeza que faltou, também ela ainda com tanto que rir, contar, fazer.
E ao Verão sucedeu o Outono, se não o Inverno que as nossas vidas já vão longas. Agora, subitamente, por mero acaso, dou com a notícia da morte do Alfredo Alberto. De uma morte já com três anos ocorrida durante o raio da pandemia não sei se por ela ou apenas porque depois dos setenta e vários “verrá la morte... insone, sorda, come un vizio assurdo...”
Qundo alguém, e é o meu caso, já dobrou o cabo dos oitenta, a morte transforma-se numa companhia habitual, não direi estimável mas seguramente pouco assustadora. Ou melhor, assusta-me mais a morte dos outros da que inexoravelmente será a minha. Apenas me vou sentindo mais só, num mundo que é cada vez menos o meu, numa praia que é desconhecida frente a um mar que como se diz(ia) em Buarcos nos meus tempos de bibe e pião, o mar “que é um cão”...
E, como reza o belo poema de Pavese, um autor que me acompanha há sessenta anos, ...”scenderemo nel gorgo muti”...
*Alfredo Alberto Seabra Estrela Esteves, médico, pediatra em Aveiro, expulso por um ou dois anos da Universidade de Coimbra, durante a crise de 62 (por ter assinado um papel em que se pedia a demissão do reitor!..) ainda apanhou a greve de 69 na mesma universidade mas dessa vez porque, pela primeira vez, os estudantes venceram, já ninguém o perturbou.
** Verrá la morte i avrá i yuoi occhi Cesare Pavese Há tradução portuguesa
*** stessa piaggia, stesso mare, canção de Mina, 1963