Au bonheur des dames 606
Teoria do copo de água
mcr. 12-11-23
Nunca fiz tropa porque, graças a um amigo, médico, miliciano e angolano que, eventualmente, já saberia qualquer coisa (estávamos os primeiros dias de 61) entendeu falsificar ligeiramente o meu índice de robustez na época chamado “de Pignet”. Eu que era muito magro mais magro me tornei graças à miopia amável desse médico que inspeccionava os “mancebos. Ao mesmo aumentou-me a altura e reduziu-me o diâmetro do peito. Tudo junto, saí dali livre como um passarinho. Meses depois rebentava a guerra no Norte de Angola.
Todavia, conheci bem a vida militar na medida em que durante quase três anos vivi nesse meio. De facto o meu pai foi médico militar em Moçambique e nos não só vivíamos numa casa integrada num conjunto militar como almoçávamos e jantávamos no “clube militar” .
Por outras palavras tirando as horas em que dormia ou estava no liceu todo o meu tempo era passado entre oficiais do exército e respectivas famílias que, em Lourenço Marques viviam num trecho da rua de Nevala.
(nao deixa de ser irónico o nome da rua. Nevala éra (e será ainda?) uma povoação jdo antigo Tanganika, muito próxima da fronteira norte de Moçambique. Durante a primeira grande guerra as tropas portuguesas tiveram o enorme azar de terem pela frente um aguerrido, pequeno exército alemão comandado pelo general Emil von Letow, um oficial genial que derrotou sempre com forças claramente inferiores todos quantos enfrentou.
Pelos vistos terá derrotado 17 generais e um marechal e no fim da guerra com a Alemanha a pedir um armistício lá se resignou a render-se tendo sido tratado com enorme respeito e civilidade pelos adversários ingleses. Mais tarde foi um dos poucos generais alemães que nunca aceitou Hitler que só não o perseguiu por ser muito velho e considerado como o melhor general da Alemanha. Ora a tropa portuguesa averbou sucessivos e constantes desaires tendo aliás o exército alemão penetrado em território moçambicano até perto de quelimane. Nuama dessas razias alemãs, tropas portuguesas “tomaram” Nevala que, aliás estava deserta e sem guarnição. É ssa tremenda vitória que fez com que ruas por todos os lados fossem baptizadas “de Nevala”)
Portanto, conheci mais do que bem a organização militar e inúmeros oficias alguns dos quais depois terão chegado ao generalato.
Foi com eles e com o meu pai que aprendi o bridge e tenho de várias, uma boa dúzia, as melhores e mais gratas recordações.
Tudo isto para deixar claro que, paisano até à medula, não sinta pela gente militar nenhum sentimento especial de antipatia mesmo se também nunca tivesse morrido de amores pelos soldados profissionais.
Entretanto, ontem, ao que sei um cavalheiro militar de alta patente deu-se ao luxo de criticar uma colega de debate em termos que, ao sentir-se insultada, levaram esta última a atirar-lhe com um copo de água.
Ouvi e vi várias vezes o militar em causa pronunciar-se em mesas redondas sobre a Ucrânia e não posso dizer que me tenham seduzido as suas elucubrações.
Não tanto por me parecer mais “russista” que muitos outros “russistas” que por aí andam que, em sua defesa, podem apontar simpatias ideológicas e passados, ou presentes, políticosmas tão só porque oa criatura usa incessantemente o argumento de autoridade como se as guerras alguma vez fossem apenas uma questão militar. No caso, este general não deve, ao que me lembre, ter alguma vez estado em combate, pois levamos já quase cinquenta anos de paz.
Vi e ouvi a dita criatura “destratar” colegas da mesma mesa um par de vezes tendo até uma vez sido exemplarmente corrigido por um embaixador que reduziu a nada um par de afirmações cuja qualidade era mais corrosiva que verdadeira.
Claro que uma mulher deve pensar duas ou mais vezes quando se atreve a enfrentar uma criatura belicosa e de profissão bélica. As pessoas, mesmo sendo pagas por uma cadeia televisiva, devem ter em conta se vale o u não falar com qualquer quiddam que lhes surja pela frente.
E, sobretudo, não podem recorrer a armas traiçoeiras como um copo de água!
Primeiro porque induzem os restantes a pensar que pretendem, não lavar a honra própria mas, acara ou o corpo alheio.
A um membro do Exército de terra não se atiram copos de água mesmo que se possa pensar em higiene ou confundir o atingido com um membro da Marinha que, por estar habituado a meios aquáticos sabe defender-se melhor do líquido agressor (H2O).
Na história militar há inúmeras descrições de armas mas que me recorde (e eu sou um fanático leitor de História) não consta a água, É verdade que durante a Idade Média, sobretudo, havia fortificações cercadas de fossos de água. Eram poucas, até porque o sítio em que se erigiam os castelos era normalmente uma elevação tão alcantilada quanto possível. Depois, a água era um bm precioso para os defensores e ninguém queria “dar uma banhada” nos agressores. É verdade que, em termos líquidos, constam descrições de azeite a ferver mas só no caso de poder acertar em quem tentava escalar uma muralha.
Água nunca! É verdade que a senhora Deu-laçdu Martins atirou com um par e pães de trigo aos atacantes mas não queria feri-los. Apenas tentava convencê-los que Monção nadava em comida e que o cerco era inútil. O truque terá resultado mas agora anda por aí uma cambada de desmancha-prazeres a afirmar que a personagem é meramente lendária!...
Portanto em questões guerreiras nem pão nem água. Estes dois elementos decoram mais as histórias de prisão onde se deixava um desgraçado prisioneiro a pão e água. Como ex-preso devo dizer que no meu tempo (e mesmo nos anos da “outra senhora” sempre se tinha um passadio alimentar um pouco mais composto. Pelo menos em Caxias...
Este arremesso de água, provavelmente do Luso a um militar de alta patente lembra-me uma expressão que muito prezo e uso: “toma lá que já bebes1...”
Mas uma coisa são as expressões populares outra o o grau exigível de agressão a um general.
Não vou afirmar que ao sentir-se atingido (molhado) a agredido tenha gritado como o imortal Quincas “água!” tanto mais que desconfio sempre das leituras de alguns militares (e de outros tantos civis, já agora). Lerão eles Jorge Amado? Ou apenas Clausewitz?
No tempo em que menino e moço deambulava pelo clube militar reparava que vários militares de diferentes patentes acompanhavam o seu whisky com soda, raramente com água. Ora aí estaria um excelente conteúdo para o arremesso ao militar de alta patente. Um whisky com duas pedrinhas de gelo e água do Castelo. Bem sei que a coisa soa a desperdício mas um general é um general.
Já o meu antifo colega de liceu (exactamente em Lourenço Marques) Manuel Fernando Magalhães descreveu no seu romancinho de estreia (quiçá o único) uma cena em que o herói depois de apertar a mão a um conhecido recentíssimo, vem a saber que ele é militar. Aflito, recorre a uma garrafa de whisky e lava mão pecadora. A conta disso, e porque estava na tropa, foi duramente punido com prisão e tudo. O Magalhães morreu semanas depois de termos chegado á fala e combinado um encontro após quarenta anos sem nos vermos. Raio de sorte!
Hoje édomingo, as notícias, até este momento, são escassas pelo que entendi relatar este fait divers e deixar à drª este recado: se precisar de mais água mande dizer. E não esqueça de acrescentar qual:, limpa ou suja, das pedras ou da torneira. Terei todo o gosto em ajudar a sua higiénica missão. Boa pontaria!
* Jorge Amado, "Os velhos marinheiros" (a morte e a morte de Quincas Berro d'Agua)
Manuel Fernando Magalhães , "3x9= 21", Atantida editora, 1960 (ou 59?)
Convém explicar o título: o Magalhães foi o pior aluno de Matemática que alguma vez conheci. O nosso professor Armindo Brito entregav-lhe o ponto corrigido sempre de costas e, convenhamos, alguma razão tinha...