au bonheur des dames 608
Mário Brochado Coelho
mcr, 25-11-23
Conheci o Mário num longínquo Outubro de 61, em Coimbra, no Teatro Avenida, por ocasião do único comício autorizado da Oposição por altura das eleições para a "Assembleia Nacional".
Nessa altura, o jovem MBC, estudante de Direito, entendeu gritar por uma oposição católica e progressista. Foi a primeira vez que vi um "católico progressista" e mal eu sabia que das depois havíamos de nos cruzar no CITAC, um dos dois grupos de teatro universitário onde, o seu nome proposto para a Direcção concitou uma pequena oposição justamente por ele ser assumidamente católico.
De todo o modo, mesmo tendo deixado a Igreja, entendi que era quase admirável haver católicos na oposição a Salazar. Data pois desse tempo tempestuoso uma amizade de mais de sessenta anos.
No ano seguinte, 1962, a crise académica volta a juntar-nos, ou melhor continua a juntar-nos na mesma barricada. Tive mais sorte do que ele pois enquanto fui preso (cm mais 43 companheiros) para Caxias por um mês, ele fez parte dos 32 estudantes expulsos da Universidade por períodos variáveis. A ele tocaram-lhe 30 meses.
Como tantos outros da mesma geração, MBC fez parte de todas as iniciativas cidadãs e democráticas que, desde a sua época de estudante até ao 25 de Abril, tentaram tornar menos cinzento, menos triste e menos violento este país. Relevo tão só a permanente disponibilidade para defender presos políticos e/ou oponentes ao Estado Novo como também, foi um dos mais activos membros da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos (outra razão para lhe estar pessoal e directamente agradecido...). Tive oportunidade de o acompanhar na primeira destas iniciativas e bastante me ajudou nos primeiros processos em que intervim como defensor de estudantes e de oposicionistas nos tribunais miseráveis em que estes eram alegadamente julgados. Aliás, depois da minha quarta (e pior) detenção em Caxias resolvi passar uma procuração em seu nome para me defender caso voltasse a ser preso. Só lhe entreguei essa procuração muitos anos depois porque, passada em inícios de 73, nunca foi preciso acioná-la.
Logo que cheguei ao Porto e comecei a minha vida profissional reatei as relações interrompidas depois da sua saída de Coimbra. Melhor dizendo tornaram-se mais fortes e frequentes e, como não podia deixar de ser, tiveram os seus pequenos momentos conspirativos. Durante algum tempo, sempre qu ia a Paris trazia-lhe farta cópia de publicações políticas, a maior parte delas vindas da embaixada da China ou de livraria afectas ao chamado movimento marxista-leninista. quando resolvi traduzir e policopiar alguns desses documentos que eu mesmo financiava e distribuía, o Mário era quase sempre o primeiro a recebê-los. Não sei se, alguma vez, percebeu qual era proveniência desses textos e só mais tarde percebi que também ele tinha acesso à documentação distribuído por Pequim e que terá ajudado a moldar parte da sua posterior acção política que já não acompanhei por, entretanto, ter escolhido outros rumos, coisa que, de resto nunca nos incomodou.
Depois da Revolução, fui convidado para presidir a uma Caixa de Previdência sob indicação dele (e de Mário Cal Brandão) facto que também só muito mais tarde descobri. Quando finalmente falámos sobre isso, o Mário disse-me que se tinha perdido um advogado mas eu garanti-lhe que não só se ganhara alguém para outras e mais gratificantes actividades mas também um jogador de bridge e que o Direito fora apenas a escolha menos desagradável que fizera já que a minha família desaconselhava fortemente o curso de História.
Durante estes anos todos até pouco antes da pandemia lá nos íamos encontrando numa esplanada frente ao mar e nas celebrações dos aniversários do nosso grupo de teatro coimbrão. Terá sido mesmo no último a que fui que o encontrei pela derradeira vez. Era o dia do seu aniversário mas o Mário estava murcho, cansado e tristonho mesmo se, com o encontro de velhos amigos do nosso tempo de teatro e aventuras conexas, lá tivesse arrebitado um pouco. dir-se-ia que os anos lhe pesavam ou que os rumos políticos do país o desanimavam. De todo o modo, a pandemia e as suas, dele, eventuais maleitas tivessem tido como resultado o fim desses encontros amigáveis a quem alguém chamou de "conversas de velhos combatentes".
Quando nos morre alguém querido lamentamos sempre os contactos que foram rareando mas isso é mesmo assim.
Dele tenho aqui dois livrinhos "Lágrimas de guerra" e "Cinco passos ao sol" bem como a soberba "Em defesa de Joaquim Pinto de Andrade" um texto jurídico que também é político que demonstra não só a sólida formação jurídica do autor como a sua generosa e abnegada campanha por Joaquim Pinto de Andrade, hoje um nome quase esquecido de um dos pais fundadores da liberdade de Angola.
Com Rui Polónio de Sampaio, António Taborda, Vasco Airão Marques ou José Luís Nunes, o Mário Brochado deixou uma marca forte no panorama jurídico do Porto e fez parte da geração que esteve em todas as lutas do combate pela democracia. Outros houve mas apenas cito estes porque, além do seu talento e mérito próprios, foram determinantes na Coimbra que me recebeu e com os quais tive a enorme honra de partilhar algumas tarefas como advogado nos tempos difíceis.
(E foram todos do CITAC... e alguns também vítimas da repressão que se seguiu à crise de 62 em Coimbra)