Au bonheur des dames 619
À esquina de um passado reticente
mcr, 15-5-24
"saudade burra " diria o Fernando (Assis Pacheco) que em matéria de ternura não pedia meças a ninguém, aquele humor irradiante, que numa fotografia tirada na zona da Ria ele disfarçava com um manguito, encostado a uma bicicleta, sorriso largo a desdizer o gesto...
hoje acordei assim, com amigos velhos já desaparecidos, a saírem-me ao caminho, como se quisessem avisar-me que também eu, agora um sobrevivente cada vez mais só, estou numa marcha irremediável que muito provavelmente nunca me deixará ver o aeroporto ontem anunciado. Dez anos é muito tempo para um octogenário mesmo se veja à sua frente uma mãe e dos tios que juntos somam quase, quase, trezentos anos. E que ameaçam lá chegar...
Por crcunstâancias nada pertinentes, dei com o texto que republico, dezassete anos depois e neste blog
Desta feita é o Manuel Sousa Pereira, desaparecido na guerra contra o covid que me bate, com insistência, à porta
ém memória deles e com um abraço mais que fraterno ao Manuel Simas Santos, colaborador deste blog em tempos que já lá vão, volto a republicar um texto com dezassete anos (e uns pós...)
Au Bonheur des Dames 47
mcr 18.01.07
Três amigos conversam diante de chávenas vazias num dia feio, triste e húmido. Estão numa esplanada envidraçada praticamente deserta, frente a um jardim onde vagueia um perdigueiro atrevido. Discutem a vida, o mundo, eles próprios e as suas circunstâncias.
Basta olhá-los para saber que são barcos que viram muito mar, muitos portos, algumas tempestades e, porque não?, uma que outra brisa marinha, fresca e repousante, brisa com cheiros de terra próxima, um vago perfume de laranjais carregados, de acácias vermelhas, de terra quente depois da chuva.
Três amigos como três marinheiros, três pescadores reformados, olhos que viram os nevoeiros da Terra Nova, os sinos de bordo, as roncas do porto discutem o mundo, a vida, eles próprios.
E há alguma vivacidade, demasiada porventura, nos argumentos que trocam, nas interrupções, nos gestos vivos malgrado as cabeças já brancas como as barbas que, estranhamente, ou nem isso, todos usam.
Noutro tempo, noutro lugar, os ecos da conversa alimentariam a ideia de uma discussão apaixonada, quase colérica. Mas basta ver o cuidado com que se dirigem a um deles, o que espeta a orelha, com a mão em arco como se ouvisse mal, para perceber que daquela conversa está arredado o azedume, o escárnio, o sarcasmo. Há nas pausas que fazem, nos pequenos e raros silêncios que ponteiam uma afirmação mais vigorosa, uma subtil teia de carinho a fazer a sua caminhada.
A amizade é um percurso de obstáculos, semeado de saídas falsas, de becos, alguns alçapões. Exige a quem a pratica um constante cuidado, paciência redobrada e fôlego, muito fôlego. Os amigos, diz-se, são o sal da terra e como o sal necessitam de muita água salgada, algum vento, muito tempo, outro tanto de sol. E da constante labuta do marnoto, lavrador de minerais, alquimista humilde e necessário para que a onda nos chegue à mesa, e com uma pinga de azeite um pão, um tomate e duas sardinhas, nos faça descobrir o milagre quotidiano de uma conversa, com amigos, justamente, mesmo que seja numa esplanada deserta, num dia cinzento e triste, diante de um jardim no inverno, com um perdigueiro ao longe que corre sem saber que três velhos companheiros discutem o mundo, a vida eles próprios.
Depois levantam-se, um deles deixa umas moedas sobre a mesa, vestem os capotes, dirigem-se para a porta, abrem-na sem pressas e seguem lentamente passeio fora até à curva do caminho...
* Fotografia de grupo: m.s.p. e m.s.s com m.c.r.. numa esplanada
o título deste texto só foi encontrado depois dele estar escrito: fica no fim que é para aprender!