au bonheur des dames 621
Um pranto por Maria Parda
(adeus Fernanda Dias)
mcr, 18-10-24
Ainda há poucos dias, o meu irmão
afirmava que tínhamos tido uma sorte imensa ao chegar a Coimbra e à universidade em Outubro de 1960. E isto não se devia a pena a termos vivido uma década de oiro e testemunhado algumas da mais importantes mudanças que omundo (mesmo este ainda...) conheceu. Desde a eleição de Kennedy, às guerras da Argélia ee do Vietnam . à revolução cubana, ao desastre da "grande revolução cultural (mesmo se nada teve de cultural...) ou aos primeiros tempos da descolonização. A n´vel caseiro, foram os anos da mudança académica em Coimbra, do fortlecimento da oposição estudantil, da guerra colonial e de todos os seus efeitos. Junte-se-lhe o súbito aumento do turismo estrangeiro, a entrada maciça das mulheres no mercado do trabalho e paralelamente a primeira e incipiente "democratização" da universidade. Em 1960, coimbra tinha 5000 estudantes, nove anos depois já ultrapassavam os 8000. E nesse número a entrada de mulheres na universidade tivera um aumento exponencial.
É e aqui que chgamos à Maria Fernanda Dias (de Almeida Taborda pelo casamento com o António Taborda, seu companheiro de uma vida inteira. também ele dirigente académico, também ele expulso da universidade, advogado de todas as boas causas, amigo indefectível .)
No ano de 1960, a Associação Académica mudou de dirigentes. A mais de dez anos de direcções afectas ao regime salazarista , muitas vezes quase se confundindo com funcionários do governo, eis que uma nova geração irrompeu e graças a um mobilização extraordinária dos estudantes, venceu as eleições para a maior (e mais antiga) Associação de Estudantes do país. Foi a direcção Candal (assim se chamava o presidente eleito, mais tarde prestigiado advogado, importante lider da Oposição e depois, deputado socialista). Candal era apenas o "primus inter pares" dessa lista prestigiosa e prestigiada de estudantes . Apenas referirei que entre os restantes seis havia uma mulher (apenas uma!...) de seu nome Fernanda Dias, estudante de Direito. corajosa como poucos, inteligente como ainda menos, democrata e excelente actriz no TEUC (Teatro Universitário dos Estudantes de Coimbra).
Em Coimbra, além da AAC, existiam diversos agrupamentos culturais estudantis que mobilizavam muitas centenas de estudantes e que aliadas a estruturas informais mas tradicionais na Academia, constituíram sempre o núcleo cultural e político da mudança profunda na massa estudantil.
E é bom lembrar, quase setenta anos depois, que essa geração, mesmo privilegiada pelo nascimento, pela educação e pela fortuna, comeu o pão que o diabo amassou, sofreu perseguições, ameaças de toda a espécie, viu muitos dos seus serem presos obrigados ao exílio durante anos, proibidos de aceder a um sem fim de cargos administrativos ou até à função pública.
Esta geração, pelo menos os homens, apanhou com a guerra colonial , com as primeiras e duríssimas batalhas de Angola e deixou por lá um rasto de mortos de que apenas quero referir o João Cabral de Andrade, méd.ico que já não voltou a Portugal , morto numa trivial estrada do norte de Angola.
A História passa por cima de dramas individuais, de pessoas isoladas, de histórias de heroísmo, coragem, e dedicação para apenas fixar os grandes momentos.
De quando em quando, tento, sem grande talento e menor habilidade fazer o retrato de muitos amigos, companheiros, camaradas que involuntariamente (ou não) me fizeram quem hoje (ainda) sou. Sinto-me, cada vez mais, e mais dolorosamente, um sobrevivente que tem a estricta obrigação de testemunhar. E isso, e quase só isso, a razão desta minha teimosa permanência neste pequeno espaço onde vou escrevendo para eventuais e desconhecidos leitores, muitos ou poucos, pouco se me dá, e, em boa verdade, uma que outra vez, chega-me desse lado aí, um eco, um abraço uma pequena voz que me obriga a continuar.
E hoje, melhor dizendo desde há dias, é a imagem da Fernanda nesse ano longínquo de 60 (ou 61. sei lá) no palco do Avenida a dizer o extraordinário "Pranto da Maria Parda" de Gil Vicente.
A Fernanda era grande, voz possante, talento para dar e vender e "fazia" uma Maria Parda extraordinária, vicentina, popular, inteligente. A comédia e a tragédia desse texto vicentino que apenas e, primeira leitura parece cómico, foi um dos grandes momentos do teatro que eu vi(vi) e notem que vi muito, do bom, do maus r do melhor por essa eurpa fora, às vezes em línguas que desconhecia (e recordo o Piraikon Theatron, grego com duas sublimes tragédias ou uma récita sueca em que apenas descortinei a plavra "Pricessa", assim mesmo, pelo menos ,assim a registei.
Depois da actriz, conheci a rapariga, a colega mais velha, a profissional competente, a cidadã exemplar, a amiga. Com o andar dos anos, vamo-nos perdendo de vista e tenho ideia que a última vez que nos encontrámos foi no enterro do António seu marido e meu amigo. Em envelhecendo vamo-nos isolando, perdendo por icúria ou preguça contactos , caras e amigos. subitamente a morte vm, e com ela um turbilhão de remorsos, recordações, gargalhadas antigas ou a memória, também dela de momentos de aflição de que os nossos tempos de juventude não foram avaros.
Agora a Fernanda já não está. Resta um sorriso, uma palavra gentil o pranto inesquecível da Parda (que em Gil Vicente queria significar negra, que nessa época pré (des)Ventura já por cá mourejavam (e notem esta palavra. mourejar, sinal da mistura de raças e gentes) pretos trazidos por alguma nau de torna viagem.
Permitam, pois, este pranto agora meu, por alguém a quem devo uma alegria teatral, outras muitas amigáveis
E se aqui chegou alguém que leio uma vez mais o texto vicentino que em homenagando o Mestre, também há espaço para cumprimentar o actor que o ressuscita cada noite nas tábuas de um teato ode quer que seja.