au bonheur des dames 622
Há asneiras que estragam a melhor causa
mcr, 24-6-24
A drª Constança Urbano de Sousa, infortunada ex-ministra da Administração Interna, achou por bem citar a PIDE no que toca às escutas usadas em larga e desconforme escala.
Segundo a citada tal uso desproporcionado de escutas “era o que a PIDE fazia”.
Eu não sei (e também não me dei ao trabalho de ir ver ) qual será a idade da autora deste dislate.
Aposto, dobrado contra singelo que se, porventura nasceu antes de 74, foi por poucos anos.
Hoje em dia, verifica-se que pouca gente sabe como funcionavam as instituições do Estado Novo, mormente a censura ou a PIDE.
Nos anos 60 e 70 (os únicos que posso testemunhar) a PIDE lá ia fazendo o que podia para saber o que se passava nos meios oposicionistas. É verdade que já havia “escutas” mesmo se, dado o atraso tecnológico até em relação ao que ocorria noutros países, as escutas fossem (felizmente) pouco eficientes.
A PIDE recorria a outras fontes de informação notoriamente mais eficientes.
Em primeiro e destacado lugar, havia uma multidão de informadores (todos ou quase todos) a soldo da polícia que forneciam abundante informação sobre cidadãos desconformes com o regime.
Provavelmente, havia um número ainda maior de indivíduos que por seu livre alvedrio diligentemente denunciava conhecidos, vizinhos, familiares. No meio disso, devem acrescentar-se as denúncias por vingança que, em algumas “memórias” de agentes da PIDE são referidas, também não eram poucas.
Uma outra fonte de informação largamente privilegiada pelos polícias era a obtida nos interrogatórios feitos a detidos e pode mesmo afirmar-se que tais interrogatórios (a maior parte das vezes com recurso a violência desenfreada ou aos métodos “científicos” do “sono” e da “estátua”) eram outra preciosa e abundante fonte de informação policial.
Aliás, e ainda neste capítulo, convém lembrar que, mesmo sem violência excessiva, bastava o medo. A policia recolhia assim farta dose de notícias sobre a vida da oposição e dos seus principais membros.
De cada vez qque a polícia identificava e prendia clandestinos conseguia abundante informação nas casas dos mesmos porque em algum lugar havia que manter os arquivos . as informações, os documentos necessários à acção política.
(lembraria ainda que no simples acto anual de matrícula nas universidades, os estudantes eram obrigados a fornecer fotografias que obviamente engrossavam os ficheiros policiais. Ou seja, universidades e diferentes instituições públicas entregavam diligentemente ao aparelho repressivo meios importantes para despistar possíveis oponentes. Não recordo se, depois do 25 A se fez alguma investigação neste campo.
Finalmente, e como aqui mesmo se ilustra, os CTT forneciam uma extensa gama de serviços, advertindo as autoridades sobre cartas vindas ou enviadas por gente suspeita que, lá mesmo, dentro das estações eram abertas, copiadas e finalmente entregues aos destinatários sem que estes conseguissem perceber a violação da sua correspondência.
Tudo isto, este extenso arsenal de recolha de provas era acompanhado pelas detenções mesmo quando nada, ou muitopouco, parecia haver contra os presos.
Pela parte que me toca experimentei pelo menos duas vezes desse tratamento. A primeira pela PJ (que nunca foi inocente no que toca à repressão política) e que verifiquei durante a detenção sofrida em Coimbra, nos cárceres privados da PJ nos subterrâneos do Tribunal Judicial
Tive o raro e pouco recomendável privilégio de bater o recorde de duração de prisão de um estudante durante a crise académica de 69. Aliás, só fui libertado porque esta polícia apesar de tudo respeitava prazos processuais.
A segunda (4ª prisão sofrida) ocorreu em Caxias, depois de largos dias de estadia no último andar da sede da PIDE.
Lá tive de fazer das tripas coração e aguentar duas longas sessões de “estátua e sono”. Ainda hoje, tenho por certo que o que me salvou de uma qualquer confissão foi apenas o sentimento de vergonha que me atormentava caso “falasse”. Em boa verdade, a PIDE também disparou para o lado no que toca à minha presumível culpabilidade. Quando percebi que me tentavam acusar de pertença a um grupo político que jamais frequentaria, consegui aguentar os restantes interrogatórios sem especial preocupação a pontos de um miserável inspector, de seu nome Tinoco, ter chegado à extraordinária conclusão de que eu era “um revolucionário por conta própria” sem ligações políticas a grupos clandestinos (sic). Saí dos quartinhos do último andar da António Maria Cardoso e fui estagiar por alguns meses na estância termal de Caxias. Depois, deixando uma caução 50% superior aos restantes presos da mesma fornada fui mandado embora para aguardar um processo que nunca veio (ou que o 25 A anulou).
Desculpar-me-ão esta nota biográfica mas apenas serve para provar que conheci bem, demasiadamente bem, as usanças das polícias. E digo polícias porque todas colaboraram na mesmíssima e despudorada máquina repressiva.
A senhora Urbano de Sousa faz muito bem, nunca as mãozinhas lhe doam, em apontar a canalhice (e estou a medir as minhas palavras) de andar anos e anos em escutas, como um vulgar cheira merda teimoso (e vicioso).
Poderia também referir o uso e abuso da prisão preventiva de que há bem pouco (caso da Madeira) tivemos prova insofismável
Poderia, igualmente, condenar a surpreendente constituição de arguido sem que este, durante meses, seja sequer confrontado com factos e provas do seu eventual delito.
Esta prática atira para a praça pública pessoas que podem ver a sua vida largamente prejudicada (e aqui cabe o caso de António Costa ou mesmo o de Miguel Albuquerque).
A sanha persecutória de certas criaturas, protegidas pelo seu estatuto e definição de entidades judiciais, é agravada pela falta de comunicação de que há hoje abundantes exemplos.
Aí sim, poder-se-ia presumir de uma qualquer aparência de semelhança com os antigos métodos mas usar o nome da PIDE em vão é uma patetice, para não dizer um abuso ou, pior ainda, uma estupidez.
Em Portugal há um determinado número de palavras e expressões cujo uso e abuso as faz perder qualquer utilidade e significado. A existência florescente do Chega prova à evidência que a acusação de fascismo não convenceu um milhão de portugueses. Também outro milhão fez ouvidos moucos à acusação de colaboração com o mesmo fascismo e com a direita radical, imperialista, capitalista e mais uns quantos “istas” que já não mobilizam ninguém. Aliás, também alguns, bastantes conservadores, acham que chamar comunista a torto e a direito tem eficácia. Não teve e continua a não ter.
Não faço ideia se a sr.ª Urbano de Sousa tem influência que se veja para dar aulas de ideologia a quem quer que seja. Confesso que a julgava retirada das lides mas pelos vistos, ainda há quem a entreviste. Curiosamente na mesma altura em que o Dia de Portugal foi celebrado em Pedrógão. Pelos vistos, já ninguém, se lembra do seu papel naquela tristíssima história.
Vivemos, apesar de tudo, num regime democrático. As instituições funcionam, os direitos humanos são respeitados mesmo se, como é o caso, se verifiquem disfunções que poem e devem ser anuladas. Todavia, não parece razoável nem decente vir à baila com situações e métodos do passado para qualificar um instituição que, seguramente, é útil, necessária mesmo se haja deficiências na sua actuação. Aqui a questão é mais de pessoas do que afirmar que tudo anda sem rei nem roque. Um cidadão anónimo e pouco informado poderá achar muito adequado falar em pide ou em KGB ou outra coisa qualquer. Uma ex-ministra, deputada, professora universitária não pode. A menos que, como outro sinistro professor de direito agora na política, também use de má fé.
junta-se uma amostra de relatório de intercepção de correio feita pela PIDE. A carta e´ do signatário e estava endereçada a João (Granjo) Pires (Quintela), refugiado político em Paris.
Consta do pro cesso 49256/S.R. referente a este escriba e foi encontrado por militares milicianos que tomaram a sede da DGS no Porto nos dias imediatamente posteriores ao 25 A. É pelas minhas contas o 14º processo de que fui alvo sendo que todos os restantes estão depositados na Torre do Tombo para onde este seguirá logo que o fotocopie devidamente