Au bonheur des dames 627
A gata Ingrid Bergman e já uma saudade
mcr, 2 de Agosto
Há um deus único e secreto
em cada gato inconcreto
governando um mundo efémero
onde estamos de passagem
Um deus que nos hospeda
nos seus vastos aposentos
de nervos, ausências, pressentimentos,
e de longe nos observa
Somos intrusos, bárbaros amigáveis Bergman
e compassivo o deus
permite que o sirvamos
e a ilusão de que o tocamos
(Manuel António Pina)
Ao fim de dezassete anos de pura alegria, de mimo de prodigiosos saltos e correrias pela casa, a gata Ingrid Bergman esgotou as suas sete vidas
Em termos humanos era pouco mais velha do que eu e mil vezes mais carinhosa, bem disposta, aventureira e curiosa.
Decerto mofo, ela parecia mais dona da casa, estantes incluídas, do nós. Tirando o colo da CG que ela considerava o seu lugar de eleição para o sono das seus da tarde, havia no mínimo uma duzia e meia de poisos onde era possível encontrá-la deitada a dormir o sono dos gatos bem aventurados. Isto não contando com outros sítios para onde se esgueirava quando via um gavetão aberto, uma porta de armário mal fechada.
Nesses momentos a CG corria a casa desesperada mesmo sabendo que a gata estava lá dentro e, em princípio, livre de qualquer perigo. Com o passar dos tempos inventámos um método para a encontrar mesmo se isso nos custasse bastante tempo.
Um dos segredos era pensar onde é que ela não poderia logicamente estar. Devo dizer que em trinta por cento dos casos era tio e queda. Estava exactamente aí nesse local que julgávamos inalcançável.
Os gatos são, sabemo-lo todos, curiosos e há mesmo um dito inglês (curiosity kill the cat) que vem desde Ben Johnson e Shakespeare.
No caso da Ingrid, a curiosidade vinha a meias com o habito de dar as boas vindas a quem quer que nos batesse à porta. Fazia amigos de quem quer que nos aparecesse tanto mais que, ao contrário da Kiki de Montparnasse, sua companheira de sempre, era absolutamente intrépida e, como o velho chefe gaulês, só receava que o céu lhe caísse na cabeça ("mais ça ne sera pour demain!").
A idade avançada, um coração subitamente frágil e mais três ou quatro complicações, levaram-na sem sofrimento mas com aflição extrema da CG. na tarde de anteontem.
Uma gata que já era da família (dezassete anos) sempre a partilhar a casa e os dias connosco deixa um rasto de saudade que vários amigos e familiares já começaram a partilhar.
Este Verão é como o nome de um grande filme de Zurlini, um verão violentoe faz-me lembrar que não é primeiro, sequer o segundo em que apanho subitamente com a notícia da morte de seres queridos mesmo se já esperávamos (desesperávamos...) má notícias. No caso da gata ela não se queixava mas apenas ia murchando, ia-se afastando, passava longos tempos escondida debaixo de um pequeno maple como se quisesse preparar-se para morrer escondida de todos. morreu com várias pessoas à votla, eutanasiada, na veterinária. Recusei-me a despedir-me dela e menos ainda a vê-la morrer. quero conservar como última imagem dela o breve momento em que para gozo dela a escovei na varanda à janela.
Há um par de anos, li uma crónica de Eugánio Lisboa em que este excelente crítico referia a morte de uma gata que também acompanhava a família há longos anos- Agora percebo melhor o desgosto que se reflectia no seu escrito. Todavia, o Eugénio, já também cá não está para eventualmente me ler
*na vinheta as gatas Ingris Bergman e Kiki deMontparnasse, A A Ingrid é a amarela