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Incursões

Instância de Retemperação.

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Instância de Retemperação.

au bonheur des dates 407

d'oliveira, 26.12.19

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mcr le fou

(na morte de Ana Karina, minha impossível namorada)

 

Tinha a minha idade, talvez um ano mais, mas continuo a vê-la (e desejá-la) muito, mas muito, mais nova. E, nesse impossível filme, também eu sou jovem, também eu deambulo pela vida sem saber exactamente o que queria embora tivesse certezas absolutas quanto ao que detestava e do que terrores nocturnos e diurnos fugia sem rumo.

Faço parte de uma geração que nasceu em pleno auge do cinema. No meu caso, mais precisamente, o saco das águas de minha mãe, então grávida de mim, rebentou em plena sessão de um filme parece que com o Gary Cooper.

Lá fomos ela e eu, à boleia e quentinho, no seu ventre generoso, numa corrida para Coimbra, para a maternidade. O meu pai, jovem médico cauteloso, entendeu –e bem, muito bem- que um prematuro de oito meses devia nascer num local adequado e com as máximas garantias de sucesso.

Desde cedo, demasiado cedo dirão alguns mais pernósticos e invejosos, acompanhei (com o meu irmão, mais novo catorze meses) a minha mãe às matinées do Cine Peninsular. Uma vez entrados na sala escura, os dois, mais outros compinchas tão pequenos e aventureiros como nós, íamos para os camarotes que prolongavam o balcão pelas laterais até ao ecrã. Aí, de pé, olhos perdidos na tela, víamos os filmes, os desenhos animados, os documentários enfim tudo. Em boa verdade, o primeiro filme que recordo foi “Não há paz entre as oliveiras”, um excelente clássico neo-realista de Giovanni de Santis, um autor, hoje (tolamente), esquecido.

Depois, ao longo dos anos, fui devorando quantidades absurdas de filmes que, graças ao cine clube de Coimbra, a umas escapadas a Paris, praticamente cobrem toda a produção interessante (e não só) dos anos 50 a 90.

Jazem em estante própria, cá em casa cerca de mil dvd, 90% dos quais de cinema até esses anos (se algum eventual leitor souber de um dvd com “Douro faina fluvial”, por favor avise-me que não dou por ele em parte alguma).

Durante esses longos e maravilhosos anos, foram muitas as actrizes que me encheram o olho e me provocaram uma respiração acelerada. Num país soturno, o cinema era uma porta aberta para a liberdade, às vezes para o futuro, para a aventura que nos era diariamente negada. Vivi até aos treze anos numa zona turística e balnear e o simples facto de o Verão transformar abissalmente as nossas vidas e experiências, tornava ainda mais urgente o mundo (mesmo se de fantasia) que o cinema abria. Era um época em que se viam fitas vindas de boa parte da Europa (da França, da Inglaterra, da Itália, da Alemanha e da Suécia) e a realidade, mesmo reinventada, dessas longínquas paragens aliada à pequena mas constante visita de turistas estrangeiros, tornava ainda mais difícil o nosso dia a dia mesquinho e obrigava-nos a tentar mudar a realidade política e social que nos castrava o pensamento. Não eram precisos os admiráveis Esenstein, os proibidos italianos ou o “Zero de conduite” para sonharmos dar um rumo diferente às nossas peregrinações pelo “país triste”. O cinema explicava-nos que havia outra realidade que por muito cor de rosa e adulterada que fosse, permitia pensar um mundo diferente.

Eu nem me atrevo a fazer aqui a lista das actrizes que me emocionaram mais do que era devido não só pela sua arte mas também, há que confessá-lo sem rebuços, pelo corpinho. Em minha defesa devo acrescentar que algumas mulheres que não primavam pela beleza ou fugiam do cânone também mereceram a minha devota atenção. Basta-me citar duas italianas de primeiro plano: Ana Magnani e Giulietta Masina, mulheres de corpo inteiro que contribuíram enormemente para o sucesso de alguns dos grandes realizadores italianos (no caso de Masina, Federico Fellini, a Magnani filmou mais e com muitos e não há dela um único filme piroso).

Porém a Karina - e também um pouco Eleanora Rossi Drago ( “Verão Violento” de Zurlini), Claudia Cardinali (“A rapariga com a mala” ,Zurlini outra vez!) e Jeanne Moreau (“Eva” de Losey) – acertaram em cheio nesta tosca e tímida criatura nessa década dourada mas violenta dos anos sessenta. A esse grupo junta-se a trágica figura de Jean Seberg (“O Acossado”, Godard) de que sempre lembrarei, e por mais de uma razão (como alguma vez contarei), a rapariga que vendia o New York Herald Tribune. Também ela foi musa, e de que maneira, de Romain Gary um notável escritor que cometeu a proeza de ganhar por duas vezes o Gongourt.

Todavia, a Karina tocou-me mais fundo. Provavelmente a época agitada e exaltante que se vivia contribuiu muito para isso. E a presença do grande Samuel Fuller no elenco, prova provada de quanto o cinema americano influenciou a nouvelle vague em geral e Godard em particular. Ana Karina surge já o filme leva um largo par de minutos mas a sua força, ou a sua simplicidade transforma o ambiente fílmico e dá um sentido absolutamente novo quase iconoclasta à aventura do herói (Jean Paul Belmondo, numa actuação densa quase à beira do cabotinismo) cuja vida cinzenta se transforma numa rota imprevista rumo à liberdade). Num único filme a jovem actriz entra na divisão maior das actrizes francesas, clube exigente e pouco numeroso.

Eu não sei se basta um filme para marcar um intérprete e tornar lendária uma personagem. Porém, verdade ou não, pouco me importa, isso ocorreu com Ana Karina que na altura andaria pelos vinte cinco, vinte seis anos.

Citei acima algumas actrizes e respectivos filmes onde tiveram uma preponderância marcante. Para, algumas, e basta citar Claudia Cardinale, esse momento de entrada na alta roda do cinema dá-se com “La ragazza con la valigia” teria ela também pouco mais de vinte anos mesmo se já trabalhara com Bolognini ou Visconti sem falar numa breve mas fulgurante aparição em “I soliti ignoti”. O processo foi semelhante com Jeanne Moreau mesmo se até ao “Eva” ela já tivesse filmado com Louis Malle, Vadim, Truffaut ou Molinaro sempre com presenças interessantes mas não ainda com o toque de génio que, nesse filme, também ele hoje esquecido, demonstra.

MS Fonseca, um genial cronista sobre cinema (no Expresso) titulava a sua coluna “o cinema dá o que a vida leva” (creio que era este o nome mas onde estou não tenho possibilidade de o confirmar). É uma verdade imensa que, porém, se âncora num equívoco igualmente grande. Porque o cinema, quer se queira quer não, molda costumes, hábitos e modos de ver. Torpedeia a diferença e constrói uma realidade que não é mais do que uma aproximaçãoo à imitaçãoo da vida.

Provavelmente, temos todos necessidade disso. De sobre a crua vida lhe vestirmos o manto diáfano da fantasia como Eça, sempre esse homem fatal, escreveu.

Ana Karina (e tantas outras) ajudaram-me a viver onde a vida era triste e desesperada. Só isso faz dela uma namorada ideal. E presente, sempre presente.

 

(este texto começou a ser escrito no dia seguinte à morte da actriz. Razões várias, viagens, Natal (ai o Natal! Ai a distribuição das prendas! Ai algumas prendas!...), preguiça (sempre presente, Deus seja louvado), amigos que aparecem inopinadamente à mesa da esplanada onde logo pela manhã me sento a tomar os primeiros cafés do dia, a ler o jornal e a escrevinhar estes folhetins, tudo se conjugou para só hoje, um dia depois das festas acabá-lo e acabar o luto por essa belíssima mulher.)

E já agora para vos desejar a todos um bom ano de 2020, bissexto e tudo. E deseja-lo a sério mesmo se como um verdadeiro “pobre homem de Buarcos” eu desconfie da avalancha de promessas que as ilustres e excelentíssimas autoridades que nos governam prometem. Que não seja pior do que o que passou...

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