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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

Diário Político 2010

d'oliveira, 18.10.18

Remodelar, verbo transitivo

D’Oliveira fecit 17-Out-1918

 

Se apenas nos detivéssemos a analisar os discursos, prima facie, seríamos surpreendidos por esta brusca dança de cadeiras no Governo. O Primeiro Ministro andou nos últimos meses a dizer que tudo estava bem, que não mexia nas suas criaturas. Em jornais e na televisão esta foi a pauta musical mais usada. Usada, diga-se, até à exaustão.

Afinal, havia uns ministros exaustos, usados, desgastados. Alguns saíram no domingo depois de terem aprovado um Orçamento que outros hão-se cumprir. É bizarro mas é assim. Cavalheiros com o pé no estribo aprovam o mais importante documento que não irão cumprir! Portugal is different! Allways...

Há quem diga, fiando-se apenas no habitual nariz de cera desta ocasiões, que estes responsáveis saíram por seu pé. Que, ao contrário dos comentadores mais maldosos, inimigos do Governo, pedreiros livres, bolchevistas e tudo o mais que alguém se lembre, estas agora desaparecidas criaturas chegaram-se mansamente ao dr. António Costa e pediram com varonil insistência que as deixasse ir para o sossego dos seus lares, para o conforto da família, agora que o Natal está próximo...

Este “suave milagre” não tem grande base. Primeiro porque, se alguém quer mesmo sair, sai nem que seja a bater com a porta. Depois porque, pelo menos no caso do ex-ministro da Defesa, a sua defenestração estava na ordem do dia há meses. Só por birra bizantina é que a criatura não percebia que estava a mais, que, eventualmente, sabia de mais. Quem o viu, nas últimas semanas, garboso e marcial, ao lado do Primeiro Ministro que o cumulava de amabilidades, percebe perfeitamente que o homem se agarrava ao lugar como lapa ao rochedo. Estava, parecia dizer, de pedra e cal.

O senhor Ministro da Cultura, depois de mandado para casa, afirmou que fora muito feliz no seu ministério. Ora quem diz isto não faz supor que andasse pelos cantos do palácio a remoer mágoas e queixumes e a pedir pelas alminhas que o soltassem daquela medonha prisão da Ajuda.

O senhor Ministro da Saúde, não só permaneceu impávido e sereno (e muitas vezes com razão, demasiada razão...) perante os ataques de médicos e de enfermeiros, perante os remoques sobre o SNS (de cuja quase falência de nenhum modo era responsável: é bom lembrar que ali, na falta de meios, andou sempre a mãozinha de Centeno) foi, também ele, alvo da defesa pertinaz do chefe do Governo.

O discreto ministro da Economia que nunca conquistou as simpatias dos media, do público, das empresas e do resto, desdobrou-se nas últimas semanas num frenético rol de actividades, aparecimentos, promessas e declarações que, também, não prenunciavam qualquer ímpeto de abandono. Bem pelo contrário.

E por aí fora (sem esquecer Seguro Sanches que sai para alegria de todos os que andam a ganhar a vidinha cobrando ao Estado, melhor dizendo a nós, balúrdios muito mal justificados se justificação cabe aqui).

A imprensa, falada e escrita, jura que esta mudança tem em vista fortalecer a componente política do Governo. Não consta que, por exemplo, a dr.ª Graça Fonseca conheça melhor o mundillo cultural do que qualquer dos seus antecessores. Sabe-se, isso sim, que é uma fiel entre os fieis de St. António Costa pai dos milagres sucessivos. Idem quanto ao jovem Galamba cujo conhecimento das políticas energéticas é desconhecido de todos. Mas, também ele, é um fiel mais seguro do que o embaraçador Sanches que de seguro só tinha o nome.

Diz quem sabe que a novel ministra da Saúde tem sobre o sector um olhar que não se diferencia especialmente do substituído ministro. Mas que este estaria desgastado pela violenta e persistente ofensiva das corporações da saúde e pela endémica falta de dinheiro. A ver vamos se, como no das rosas, haverá o milagre da multiplicação de verbas para a Saúde.

As remodelações ocorrem quando algo começa a falhar ou para, pelo menos, dar a imagem que há algo de novo no horizonte. A “novidade” é um produto que vende bem sobretudo em época pré-eleitoral. Todavia, lembremos que vinho velho em odres novos não demonstra nada, mesmo se o provérbio fale em vinho novo em invólucro bem antigo.

E finalmente, a pergunta ou a constatação: estes novos responsáveis vão governar dentro de umas balizas orçamentais para as quais em nada contribuíram. É verdade que o Orçamento só fecha depois da discussão no Parlamento. Mas alguém acredita que, depois de tanta discussão no interior da “geringonça”, mude algo de substancial? Que os recém chegados Ministros que terão de penar um par de semanas só para conhecer os corredores do seu ministério e alguns dos mais importantes dossiers, poderão ter na discussão uma intervenção realmente produtiva?

As remodelações são sempre uma aposta ou, no pior dos casos, um remedeio para situações controversas (ainda hoje, em França, se noticia uma e seguramente que na Alemanha estará na forja algo do mesmo género dada a nova situação criada na Baviera onde a CSU registou –mesmo vencendo – o seu pior resultado em cinquenta anos E o SPD quase despareceu: tem menos de 10% dos votos e e 2º partido passa a 5º).

As espectativas que geram ou pretendem gerar é que não são sempre as mesmas. Por cá, o mais interessante foi a reacção dos parceiros da coligação. Apanhados de surpresa, reagiram comedidamente para não dizer desconfiadamente. É que dois cenários se perfilam: Costa quer a maioria absoluta ou tão só pretende evitar a usura de mais um ano complicado. Convenhamos que este é o que mais conviria ao BE e ao PC, sobretudo ao primeiro. Só que, neste caso, há uma confissão de que nem tudo o que brilha é ouro de lei. E, nesse caso, os partidos que, fora do Governo, o apoiam também devem pagar parte do prejuízo.

Claro que nada disto, neste momento, permite que a Oposição se entusiasme. Os anos de governo de Passos (nem sempre justamente) são considerados os da crise. Sócrates está demasiado longe para que alguém se lembre da falência trágica que fez a Troika entrar em Portugal. E, para maior ironia, o tratamento de choque aplicado pela coligação de Direita está na base do ressurgimento que, anos depois, se verificou e ainda se verifica. Isso e a política do BCE, o imenso esforço de reconversão das indústrias exportadoras e a vaga de turismo sem precedentes propiciada pela insegurança na grande maioria dos destinos turísticos mediterrânicos.

Dir-se-á que o povo português pagou um alto preço nesses anos dramáticos, a começar pelo desemprego. Também aqui, convém separar as águas. Foi o sector privado quem, de facto, sofreu a vaga de falências, de despedimentos, de empresas encerradas. E a emigração. Os funcionários públicos mantiveram os seus postos de trabalho mesmo se, como com os professores viram algumas espectativas bloqueadas. Aliás, os famosos 9 anos, quatro meses e não sei quantos dias dos senhores professores não começaram com Passos mas sim, antes, com Sócrates. O mesmo Sócrates que na iminência das eleições de 2009, aumentou os vencimentos da Função Pública...

No entanto, na hora do voto, a memória não costuma mergulhar tão longe e é com isso que Costa conta.

Ainda é cedo para analisar as medidas propostas no projecto de OE. Algumas, porém, são apenas fachada. Assim, a proposta de diminuir em 50% o IRS dos emigrantes que regressem só terá impacto se de facto houver regressos. O que parece pouco provável pelo que até à data se conclui das declarações dos interessados. Não vejo um enfermeiro, por exemplo, a trabalhar na França ou na Inglaterra a resolver baixar fortemente o seu salário atual para vir ganhar o que os congéneres recebem em Portugal. A incidência de 50% no IRS não parece argumento suficiente.

Outro ponto, que aliás me surpreende, é a baixa generalizada de propinas universitárias. Tal facto aproveita a pobres, remediados e ricos. E embaraça as universidades que, a secas, perdem 50 milhões de euros que, eventualmente, serão repostos pelo Estado. Porém, como afirmava a Federação Académica do Porto, esses milhões permitiriam duplicar o número de residências universitárias. Ora o alojamento de estudantes nas maiores cidades (Lisboa, Porto, Coimbra ou Braga e Aveiro) está caríssimo e raro. Os duzentos euros que cada estudante pagará anualmente a menos são uma gota de água no preço de quartos que atingem e até superam os 500 euros mensais.

Esta medida foi apresentada pelo BE e aceite pelo PS. Percebe-se que o BE saído da burguesia urbana de Lisboa e Porto não sinta com a mesma urgência o problema dos jovens deslocados da província. Ou não se percebe, mas isso é outro contar...

Também não se vê um abrandamento na incidência dos impostos indirectos, os mais danosos porque atingem todos. Atingem desigualmente, ao fim e ao cabo, visto que o mesmo imposto no preço de um quilo de batatas tem significados diferentes consoante se ganhe o ordenado mínimo ou um salário de, p.e., 2000 euros.

O Orçamento é sempre um instrumento político o que não é grave. O problema dos orçamentos feitos no fio da navalha é outro: basta que os juros subam, ou subam mais do que o previsto e a dívida dispara e o deficit aumenta. Mesmo que não se espere nada de dramático, não deixa de ser preocupante o facto de todas as previsões indicarem uma atenuação do crescimento. É por isso que a OCDE e o FMI discordam da previsão optimista de Centeno. Por outro lado, a guerra comercial EE.UU. /China e o desenlace do Brexit, deixam pairar mais sombras do que luz sobre os anos mais próximos.

Há pois mais incertezas do que as que nos querem fazer crer. Claro que não é morte de ninguém um défice mais alto, ligeiramente mis alto do que o proposto. Há caminho feito e poderemos esperar mais um ou dois anos pelo equilíbrio orçamental. De resto, os orçamentos são sempre passíveis de medidas de correcção (“retficativos”), como se viu em anos precedentes. Não se pretende ser profeta da desgraça (nem ela é desejada, bem pelo contrário) mas convém gastar menos nos foguetes no caso de ter de apanhar as canas na cabeça. Cautela e caldos de galinha nunca são de mais.

 

(nota que tem pouco a ver: o Chefe de Estado Maior do Exército demitiu-se. Menos um trabalho para o Ministro Cravinho. Não poderia desejar melhor ao filho de um bom, velho e leal amigo).