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Incursões

Instância de Retemperação.

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diário político 223

d'oliveira, 14.11.19

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eu comovido a oeste”

d’Oliveira, 14.XI.19

 

Não, não é para recordar esse formidável escritor que foi Vitorino Nemésio (o homem de “mau tempo no canal”, quiçá o melhor romance português do passado século) mas apenas para, roubando-lhe o título de um livro, referir-me à primeira intervenção da senhora deputada Joacine Moreira.

E vou só referir-me ao conteúdo e não ao resto. Disse a senhora deputada que um salário mínimo de 900 euros (a sua proposta) seria um “acto de amor” !(sic).

Vejamos mrlhor. O PS propões, lá para o fim do mandato, 750 euros. O PC (como não podia deixar de ser) contrapõe 850 e o “Livre” atira com 900 euros. Porque não 1000, pergunto eu, já que é um número redondo e mágico?

Mas, para além deste disparatado leilão, há a justificação apresentada: seria um acto de amor! Saímos do campo da política, mais ainda do da economia, e caímos numa novela sentimental do século XIX ou numa imitação pueril e pobre de uma aula de catequese nos anos 40 (altura em que gramei uma senhora bondosa que, a par do “acto de contrição” e do “salve Rainha”. É bem verdade que conseguia escapulir-me para a mata de Soto Maior sempre que a bondosa criatura se distraía mas mesmo assim tive 13 valores –em Buarcos e nessa altura, a catequese tinha valores para podermos aceder à comunhão solene.

Ora, com algumas diferenças de idade, de locução de cor e de alegada ideologia, as duas mulheres assemelham-se num ponto importante: transbordam de amor pelos necessitados, pelos pobrezinhos mesmo se entre a época de uma e hoje haja uns bons setenta anos.

Em teoria, ninguém discute a necessidade de os trabalhadores deverem ter um salário decente que os ponha (a eles e à família) o abrigo das necessidades mais elementares. O problema que, entretanto se põe, é saber qual é a capacidade dos empregadores para pagar seja o que seja. E, já agora (algo de que raramente se fala), da produtividade.

Também é verdade que, em alguns países europeus, o salário mínimo é mais elevado (basta a Espanha aqui ao lado) se bem que noutros (todo o leste) chega a ser metade do que o que cá se paga.

E, mesmo em Portugal, temos patrões a pagar acima do estipulado (permitam-me o meu exemplo: tendo em conta o número de horas pago quase o dobro do futuro SMN e, quando ele chegar, continuarei, suponho, com a mesma distância, respeitando e pagando feriados, férias e subsídios de férias e Natal. Não o faço por amor, era o que faltava, mas por simples ética por respeito com um passado meu e com convicções por que me bato. E porque posso pagar isso sem cair na ruína iminente, convém acrescentar.)

A proposta da senhora deputada é pois, no actual quadro económico e financeiro nacional, um absurdo no qual nem ela provavelmente acredita.

Ou acredita num outro plano que não o político, por exemplo numa óptica do discurso amoroso, em que a paixão obnubila tudo e tudo permite. A senhora deputada ama os desprotegidos tanto ou mais que a finada madre Teresa de Calcutá, ou, mais perto, como a santinha da Ladeira. É uma espécie de missionaria laica o que para uma senhora nascida na Guiné e com dupla nacionalidade é quase um programa de vida.

Não sei se os trabalhadores portugueses, sobretudo os que nem ao salário mínimo actual chegam, apreciaram devidamente esta declaração fervorosa e ternurenta da deputada. De todo o modo, há que reconhecer que estamos no

“...Incrível pais da minha tia

trémulo de bondade e aletria...”

como Alexandre O’ Neil diria se conhecesse a senhora Moreira. Não me atrevo (ou melhor, atrevo-me mesmo) a citar Nemésio que, no livro que dá título à crónica de hoje, diz

“...fechei as pálpebras pesadas

de contradição e poesia...”

Sei que estas citações de dois eminentes poetas que muito estimo são salvas de pólvora seca contra o delírio parlamentar desta original deputada. Que dirão os do “Livre” destas prestações delico-doces da sua representante no areópago parlamentar?

Sorrirão felizes e enlevados com estas tiradas melosas m um tanto ou quanto nefelibatas da sua vistosa deputada?

Cá em casa, a coisa foi saudada com uma saudável mas impertinente gargalhada sobretudo por parte da minha mulher que, recordada da sua juventude perigosamente militante e pró-africana, a secundou com uns resmungos que até o neto do alto dos seus dois anos acabados de fazer, entendeu como reprimenda injusta por estar a tentar destruir o telemóvel da avó complacente.

Eu, limitei-me a comover-me, como em Coimbra quando ouvia os discursos do Teixeira e as tiradas do Tatonas. Ao fim e ao cabo na sua inocência e longe do nosso mundo, também eles mereciam amor. Com algum “pão e fantasia” como recomendava o excelente Comencini, um dos realizadores que marcou a minha juventude cinéfila.

* a estampa: fotograma de "pão amor e fantasia "de Luigi Comencini . E com a espampanante (ai, jesus!) Lolobrigida!