diário político 259
O rapaz e o lobo mau
ou o cerco contínuo
ou a cassete do costume
d’Oliveira fecit nos idos de Março
O partido comunista português herdou todos os defeitos dos seus semelhantes ocidentais (e já falecidos) sem, porém receber, como contrapeso, o que estes tinham de bom, ou de menos mau.
O PCP vê-se a si próprio como uma eterna vítima. Há cem anos que se considera como mísero e mesquinho, ameaçado por todos, encurralado, cercado, defendendo-se heroicamente do imperialismo, do capitalismo, dos monopólios, da burguesia, dos traidores, dos falsos amigos, da chuva, da seca da imprensa ao serviço de obscuros interesses, eu sei lá do que mais.
Tudo isto tem uma história, obviamente. A revolução russa (a boa, claro, a segunda, a chamada de Outubro mesmo que realmente tenha ocorrido em Novembro, pois a anterior não foi mais do qe um ensaio, com os seus mortos, os seus sindicatos, os seus sovietes, a Duma pluripartidária.
Portanto, a tomada do palácio de Inverno defendido por um pobre grupo de mulheres, o congresso interrompido dos sindicatos, a substituição dos sovietes pluripartidários por algo com o mesmo nome e completamente diferente. A guerra civil que se seguiu entre as tropas de Trotsky e os generais brancos, as intervenções canhestras de um par de corpos militares estrangeiros, mesmo não tendo sido um passeio foi seguramente mais do que a contenda entre dois bandos. A sacrificada população russa, os mujiques, a intelectualidade antes perseguida (e depois também, anote-se) os operários em armas foram obrigados a escolher. E preferiram o que lhes parecia ser o futuro, algo de novo contra as estruturas da autocracia dos Romanov apoiadas pela aristocracia proprietária das terras e a recente burguesia urbana quese dividiu entre vermelhos e brancos.
Quem porventura for ler o famoso panfleto “os dez dias que abalaram o mundo” de John Reed, um jornalista americano, sepultado na Praça Vermelha. Reed não era, ele próprio sempre o declarou, uma testemunha imparcial, bem pelo contrário. Era um activista de sempre, com um passado de lutas sociais e de guerras (a do México, por exemplo ) incansável propagandista do socialismo e, mais tarde, do comunismo. Todavia, a sua incansável curiosidade fê-lo testemunhar (maravilhado) boa parte, senão a principal parte dos acontecimentos de Petrogrado e da tomada do poder por Lenin. Ler este livro é imperioso porque depois confronando-o com as centenas ou melhares de obras sobre a “Revolução de Outubro” percebe-se o percurso de uma tomada do poder que ficaria como modelo. Claro que onde Reed vê sindicatos contra-revolucionários agora percebe-se que estes apenas se tentavam defender do controlo dos bolcheviques que aliás eram minoritários. Onde Reed vê a consagração dos sovietes agora percebe-se como eles foram dessangrados tornados simples partes de um aparelho tentacular (basta lembrar o mote dos marinheiros de Kronstadt a favor da reanimação dos sovietes e das eleições livres dentro deles). E por aí fora.
Vem desta altura , época da guerra civil e do “comunismo de guerra, das intervenções estrangeiras, das manifestações gigantesas nas grandes cidades contra o poder recente, da proibição dos partidos anarquista e socialista revolucionário, da prisão de dezenas de milhares de opositores mencheviques, bolcheviques e outros militantes de Esquerda, a teoria do cerco imperialista ao jovem Estado. A revolução mundial tinha falhado em toda a linha, o seu triunfo na Russia era, segundo a ortodoxia marxista, uma espécie de “fenómeno do Entroncamento” tanto era visível a “falta de preparação das massas”, a ausência de um proletariado organizados como no Ocidente, a oposição clara de uma grande parte dos dirigentes da 2ª Internacional ( e mesmo a menos visível dos antigos aliados de Lenin, sobretudo de Rosa Luxemburgo). É aqui que começa a teoria do cerco, do isolamento, da construção do socialismo num só país, da obrigatoriedade de defesa a outrance da pátria do comunismo imposta expressamente à novel 3ª Internacional que reunia os novos partidos comunistas, os dirigia graças aos enviados do Komintern (que eram a verdadeira direcção secreta destes partidos).
É esta sentida sensação de solidão revolucionária que alimenta entre outras a medonha teoria da “classe contra classe” que na Alemanha teve a sua mais dramática expressão. Enquanto os nazis subiam nas sondagens o pc alemão considerava o partido socialista o seu principal e pior adversário.
Depois, já tarde e a más horas, apareceram as frentes populares, as tentativas de federar a Esquerda e a guerra que começou por ser declarada uma contenda entre imperialismos e só mais tarde, dois anos depois, graças à invaão da URSS se tornou uma guerra contra o fascismo, aliando Reino Unido, Estados Unidos e URSS. Esta aliança durou enquanto durou a guerra mas, depois da vitória, como disse Churchil, “entre Stettin no Báltico e Triesteno Adriático caiu uma cortina de ferro” ao mesmo tempo que se instalava, duradoura, a guerra fria.
Os poderosos partidos comunistas da França e da Itália tiveram importantes votações mas nunca as suficientes para conquistar o poder o, mesmo, entrar no arco de governação. Competiam com outros partidos que estavam legitimados pela Resistência em qualquer dos dois países. Na Alemanha, graças à mão férrea e ocupante da URSS, na zona oriental estabeleceu-se um governo “democrático” dirigido por um alegado “partido socialista unificado” que, na realidade escondia o antigo partido comunista e uma pequeníssima franja de alegados socialistas forçados à “unificação”.
Em Espanha, o pc que varrera da cena política os trotskistas do POUM e os anarquistas da FAI tornou-se o arauto da resistência a Franco e o mais importante polo aglutinador da oposição democrática a Franco. Em concorrência com ele o PSOE manteve uma pequena presença sobretudo entre os exilados e, mais tarde, foi ganhando adeptos no “interior” mesmo que a luta anti-franquista se revestisse mais das resistências nacionalistas (País Basco e Catalunha, muito menos a da Galiza mantida viva na América Laina).
Em Portugal, a falência da 1ª República deixou um rasto de divisões na oposição dita democrática que provavelmente esteve na origem dos sucessivos falhanços “revolucionários “ contra o Estado Novo. O pc não teve actuação especialmente visível até às vésperas da guerra. Posteriormente, foi ganhando importância na luta operária masnunca foi um partido de massas justamente porque a clandestinidade forçada e prudente em que vivia o não permitia. Há, porém, que reconhecer que a partir de 45 (MUD) até a Abril de 74 foi o eixo mais dinâmico da oposição. É verdade que esta conseguiu sempre (e sobretudo com Humberto Delgado) parecer visível pelo menos em períodos eleitorais mas o pc e a sua estricta e disciplinada organização eram muito mais atraentes pelo menos para os grupos mais disponíveis para se manifestarem contra o regime. A partir de meados dos anos 60, o pc viu surgir à sua esquerda diferentes mas pequenos grupos esquerdistas que no capítulo estudantil o tentavam e muitas vezes conseguiam suplanta-lo. .Juntamente com estes começaram a aparecer militantes católicos e, já nos anos 70, os socialistas ressurgiram com a criação do PS. Ants dessa altura, os seus militantes confundiam-se com a “oposição democrática e republicana”
De todo o modo, e voltando ao exemplo soviético (agora curiosamente ressuscitado por Putin que acaba de fazer o elogio do “antes só que mal acompanhado” para caracterizar como traidores os opositores e os novos exilados que, segundo as suas palavras a Rússia “cospe” para o exterior, engrandecendo-se assim, mais pura e forte) a propaganda comunista sempre exaltou a ficção do cerco que tentava destruir a revolução, o partido e a pátria. Durante toda a sua história, a URSS, o PCUs, os países satélites e os respectivos partidos, sempre recorreram aos expurgos, violentos onde era possível, ou denunciados pejorativamente quando o sistema não permitia solução mais radical.
O leit-motiv era sempre o mesmo. O Partido estava rodeado de inimigos, defendia-se corajosamente, pirgava-se com inusitada frequência para mesmo mais magro ressurgir mais forte. Quem não estava com ele era, no mínimo anti-comunista (primário se possível). Há todo um catálogo de expressões furibundas contra críticos, dissidentes ou desviantes que valeria a pena elencar como um pequeno dicionário do frenesi partidário.
Claro que qualquer opção política, qualquer acção “inconveniente”, qualquer opinião que fugisse à norma era sempre rotulada de anti-comunismo.
Em Portugal, o PC usou e abusou (aliás usa e abusa) esta acusação. A pontos de se ter estabelecido, em franjas intelectuais a expressão anti-comunismo “primário, secundário e universitário” para dar ênfase à caricatura.
Neste momento, passada a geringonça (de que o PC foi o impulsionador) volta a vaga de alusões ao anti comunismo que grassa em toda a parte e tenta perturbar a triunfante marcha do socialismo (na versal pc) para os amanhãs que cantam.
É bem verdade que o profundo e doloroso sentimento de orfandade nascido com a implosão da URSS, a queda constante de votos e mandatos autárquicos ou legislativos, que o partido regista desde há largos anos, a solidão gigantesca a que foi condenado a propósito da invasão da Ucrânia, dão azo a que os dirigentes do pcp renovem as suas acusações, a sua lamentação, a injustiça de que se sentem vítimas.
Há um velho dito que reza assim: quando o dedo aponta a lua, o tolo só olha para o dedo.
No caso concreto, o pc não vê os tanques, as bombas, os três milhões de refugiados, os mortos nas ruas, os aviões em voo picado contra populações indefesas. Nada disso. Vê, não se sabe com que óculos, a NATO, a Europa e os Estados Unidos, em permanente conspiração contra a paz (dele, pc), vê batalhões de nazis ucranianos a invadir a ex-pátria da revolução onde um fantasmático partido comunista totalmente controlado por Putin que o deixa vegetar veio propor o reconhecimento da independência dos cantões sublevados do leste ucraniano. E com isso legitimar as operações especiais muito ao jeito de outras mais ou menos sangrentas em que o glorioso Exército Vermelho se meteu na Checoslováquia, na Hungria ou no Afeganistão. Era bem lembrar que, nestes três casos, o pc português não tugiu nem mugiu ou, melhor dizendo, acatou, aceitou, porventura aplaudiu a fraterna intervenção contra uns desmiolados nacionalistas burgueses e óbvios anti-comunistas.
Pelo andar da carruagem vamos ter um tsunami (ou vários) anti-comunista nos tempos mais próximos. Pelo menos aos olhos do pc...
*na vinheta: Nem trotsky (parece-me ele) escapou à acusação.