estes dias que passam 336
Carlos Amaral Dias
mcr em Dezembro de 2019
Não se pode dizer que fossemos amigos do peito, nada disso. O Carlos era mais novo mas foi meu contemporâneo em Coimbra. E é daí que me lembro bem, muito bem, dele.
Tivemos ambos um especial interesse pela “Internacional Situacionista” e algumas vezes trocámos ideias sobre aquele movimento original que por um lado anunciava o Maio de 68 e, por outro o ultrapassava.
Na crise académica lá estivemos lado a lado e confesso que me utilizei dele, melhor dizendo da sua detenção pela polícia.
A coisa conta-se em poucas linhas: O CAM estava acusado de pertencer a uma “comissão da confusão” cujo objectivo era enganar as forç de segurança destacadas para Coimbra utilizando para o efeito notícias falsas (olha, afinal as fake news sempre servem para alguma coisa!...).
Não sei se o expediente resultou mas o facto é que por isso ou por outra razão qualquer (e a polícia prendia a torto e a direito naqueles dias exaltantes e desafiantes) o CAM malhou com os ossos na Judiciária e terá estado a ferros nas celas do Tribunal.
Quando, muito mais tarde, e depois de umas semanas de fuga (partilhadas com o Orlando Leonardo e o João Bilhau) fui preso lá me albergaram nas mesmas enxovias onde tantos antes de mim tinham passado. Certo dia, por razões que nunca descortinei, fui metido, na sala do piquete onde na porta, convenientemente fechada estava um prego com ordens de prisão de muitos (quase todos?) os meus companheiros.
Eu, que já ali estava há umas semanas, descobri maravilhado que o Carlos fora preso de madrugada no dia 9 de Junho. quando finalmente, me decidi a confessar os meus horríveis crimes de “sedição” lembrei-me dessa data maravilhosa e confessei que fora o seu substituto na famigerada comissão.
Em boa verdade a polícia queria fechar os processos o mais depressa possível e esta confissão, ao fim de quase três meses (um recorde absoluto de tempo logo seguido pelos já citados Orlando e Bilhau), permitiu-me sair dali sem prestar quaisquer declarações que comprometessem quem quer que seja. Devo acrescentar que só me confessei a um chefe de brigada e a um tal inspector Couto (ambos da Judiciária, vindos expressamente do Porto) por ter visto que nos 22 (vinte e dois !!!) volumes que o processo já levava eu aparecia em todos!
Portanto, tentei o expediente de me fazer passar pelo sucessor do CAM acrescentando que o substituíra até partir para o Porto para celebrar o aniversário do meu sogro que caía exactamente a 10 de Junho.
A polícia, farta e ao cheiro do Natal próximo nem sequer confrontou, nesse momento, as datas. E assim, quando finalmente resolveram fazê-lo descobriram que a minha participação na “sedição” durara desde as duas ou três da madrugada de 10 de Junho até às dez horas do mesmo dia. A latere, eu também confirmei ter sido o autor de uma carta assinada pela Al-Fatah estudantil – com caracteres árabes no frontispício ! – em que chamava várias coisas ofensivas aos agentes da “Judite” e especialmente “medíocres caçadores de pilha galinhas”, coisa que enfureceu os cavalheiros que me interrogavam. Pelos vistos sentiram-se ofendidos, tanto mais que eles, aquela brigada, rinham no seu palmarés a detenção de uma porção de militantes da LUAR, aventura que me contaram com todos os pormenores e que entendi dever compungidamente apreciar.
Pouco tempo depois, voltei à polícia para tentar safar um pobre estudante detido e nessa altura foi insultado grosseiramente por ter usado tão miserável expediente. Logo eles que me tinham tratado com tanta consideração...
Anos passaram e que me lembre só nos encontramos duas ou três vezes. A última foi numa celebração do aniversário da crise e terá ocorrido há mais de vinte anos. Nessa altura contei-lhe a história acima reproduzida e de como ele, sem saber, fora o meu melhor aliado para escapar do calabouço. O Carlos riu que se fartou e afirmou-me que só por isso a “comissão de confusão” tinha tido êxito, o que não deixa de ser, mesmo que obliquamente uma verdade.
Agora, a notícia estúpida e canalha de uma morte em Lisboa (notem, em Lisboa, capital do país) por falha absoluta do INEM depois de ter havido uma avaria na primeira ambulância que o fora buscar. Pelos vistos, os bombeiros requereram uma viatura do INEM dotada de meios para resolver um problema de paragem cardíaca mas o que apareceu foi uma coisa em forma de assim incapaz de salvar sequer meia tigela de sopa com “bispo”.
Não pretendo fazer desta morte sem sentido uma arma de arremesso contra o Governo ou, particularmente, contra aquela criatura que por lá vagueia disfarçada de ministra. Todos os dias, aparecem em catadupa notícias sobe o naufrágio do SNS pelo que a morte de Carlos Amaral Dias apenas confirma o desastroso diagnóstico que as Ordens dos Médicos edos Enfermeiros, os sindicatos de agentes da saúde diariamente traçam.
Não sei se, mesmo com meios capazes, o Carlos sobreviveria. Sei que merecia outro e melhor tratamento e que esta morte pode dar azo a que alguém, espavorido se mexa. Eu, espavorido estou não por temer algo idêntico mas apenas por saber que se nem em Lisboa as coisas funcionam então o que se passará no resto do país e sobretudo nessa enorme mancha do interior onde gente isolada e abandonada de Deus e dos homens está à mercê da pura sorte.
(à margem: apareceu, claro que com este escândalo aparecem todos, uma criatura pelos vistos responsável pelo INEM ou por algo do mesmo género, garantindo que vai haver um inquérito e pedindo às pessoas compreensão e garantindo que por aquelas bandas é tudo do melhor. Vê-se!...)