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Incursões

Instância de Retemperação.

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estes dias que passam 431

mcr, 22.06.20

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Os dias da peste

Jornada nonagésima sexta

“Ergue-te sol de Verão...”

mcr, 22 de junho

 

 

É ainda manhã cedo mas o sol já lhe dá com força. A esplanada acolhe os seus habitués, oferece a quem quer uma sombra amável de guarda sol mas há clientes que preferem torrar. Já estão mais de 20 graus, anunciam-se trinta, a camisa de linho que envergo parece-me quente, suspiro pela praia que este ano não terei, a praia de Areas a sul de Sanxenxo, onde a esplanada da “Postiña” me esperava todos os dias com a promessa de mexilhões fresquíssimos, de ensaladilla, pão artesano, algum peixe  grelhado, enfim um almoço de Verão a antecipar uma sesta durante as horas quentes do princípio da tarde.

A família, ou seja a CG, a Ana, o Nuno e o Nuno pequenino (que não tem voz na matéria mas  serve de arma de arremesso) exigem uma casa no campo, com piscina e terreno amplo, na zona de Barcelos. Que fazer? Paguei a minha parte e não refilei. De certa maneira, eles tem razão. A Galiza e  a sua enorme paleta de mariscos e peixe fresquíssimo estão longe ( por acaso, nem isso), o covid que se cevou em terras de Espanha assusta e a prudência manda isolamento, cautela e caldos de galinha.

É o primeiro dia de Verão (ou o segundo?) e vem-me à memória a canção do Zeca cujo início titula o folhetim de hoje. E tem uma história esta bela cantiga que, ironicamente, se chama, creio, “coro da primavera”.

De facto, o Zeca era um tanto ou quanto desmemoriado, ou então escrevia tanto que, depois, já não se lembrava de tudo. Sei que muito antes de gravar esta cantiga a cantou em Coimbra num qualquer ajuntamento de estudantada. Quando era preciso, bastava telefonar, e o Zeca generoso e solidário (como aliás, também, o Adriano, outro amigo do peito) acorria.

Eu e dois muito queridos amigos, o António Mendes de Abreu e o João “grande” Nazaré, decorámos a canção só de ouvi-la uma vez. Seria o entusiasmo, a admiração, o facto de sermos todos da “oposicrática”, sei lá, mas a verdade era que cantiga ouvida era cantiga decorada.

Convém dizer que o António e o João tinham o que se chama bom ouvido enquanto este vosso criado nem o ré distinguia do dó. Isto tinha consequências: no numeroso grupo de amigos que se reunia amiúde e cantava sempre que podia, eu estava terminantemente proibido de intervir. Os meus notáveis dotes para desafinar contagiariam Rossini, Mozart ou Beethoven para só citar três criaturas de que, já nessa época, eu era devoto.

Lembro-me que a minha intervenção só era permitida num refrão  de Whimowhe (nem sei se é assim que se escreve) na versão de Pete Seeger. Nesse momento, único e irrepetível, toda a malta se virva para mim e eu berrava com sentimento o refrão.

Ora acontece que, num dia em que o Zeca mais uma vez veio a Coimbra, nós os três lhe pedimos para cantar o “coro da primavera” e ele não recordava a letra. O António e o o João lá se puseram a cantarolar e o Zé Afonso, comovido, só dizia “oh malta isto não é nada mau” Escreveu num papel em letras garrafais a letra e o Zeca lá se lembrou da música e mais uma vez se fez uma noite mágica.

O Zeca já cá não está, o António há muitos, muitos anos que é uma saudade e eu bem que indago pelo João mas não sei dele. Rezo, mesmo ateu, para que esteja vivo e bem.

Tudo isto, esta pequena enxurrada de memórias de um tempo difícil mas feliz, pleno de promessas e, ahimé!, de “juventud divino tesoro” (Ruben Dario) me veio à cabeça, nesta esplanada com vista para o jardim onde correm cães e num pequeno parque infantil brincam meninos sob o olhar vigilante de mães atentas.

O Verão está aí, quente, mas carregado de dúvidas. E de fogos que nos últimos dias, já as matas de Aljezur ardiam. Umas dúzias de hippies alemães, instalados ilegal mas pacificamente viram os seus acampamentos destruídos. Um deles afirmava que ia regressar à terra natal pois Portugal, descobria só agora, era “um país seco” e susceptível de fogos. O raio do teutão é parvo ou faz-se? Então só agora, depois de anos de fogos incontrolados naquelas partes entre Alentejo e Algarve é que chega a esta conclusão?

Se o alemão citado é meio tótó, que dizer dos portugas espertalhaços que se juntam em magotes por todo o lado, para aviar umas cervejolas sem cuidar de distanciamentos sociais e menos ainda do estupor do covid que ronda? Ou do filho da puta que aniversariou e já conseguiu que um cento dos convidados ficasse infectado?

Ada por aí tudo alvoraçado com as medidas de uma dezena de países que desconfiam do nosso desconfinamento e só agora é que começam suavemente a ameaçar os festejantes nocturnos.

Há um mês que a cintura de Lisboa regista entre 75 e 80% dos novos casos de infecção e só agora é que vai haver uma reunião de alto nível sobre o assunto? E querem turistas em força a acudir para este quase vespeiro?

Os poucos aviões que chegaram (e chegam) do Reino Unido e do Brasil com passageiros a quem ninguém sequer tirou a temperatura não indiciam burrice supina e escandalosa?

O Verão, imperturbável, chegou. Por esta altura, noutro tempo, preparavam-se as fogueiras, na Figueira os romeiros chegavam para o “banho santo” e a rapaziada do meu tempo estava de olho nas moçoilas que saiam do mar vestidas mas expostas ao nosso olhar concupiscente que a água moldava-lhes os corpos jovens como se nuas estivessem. Amanhã, por cá, seria noite de festa rija (oh que noites passadas entre a Baixa, as Virtudes a beira rio e a praia varada a madrugada em boa companhia... ), noite orgiástica, perfumada, atrevida, noite de todas as noites, de todos os excessos, Jesus que saudades...

Mas paira no ar, uma sombria ameaça que a imprudência de uns, as atabalhoadas medidas de outros e a geral impreparação de quem devia estar atento e rigoroso e preparado, tudo inquina.

“Ergue-te sol de Verão/ somos nós os teus cantores...”

(mas já se ouvem os temores... já se pressentem os horrores...).

Ainda iremos a tempo?

 

* na vinheta: banho santo?, Figueira da Foz, 1935 (tenho as mais fundadas dúvidas que a fotografia retrate o banho santo que costumava ocorrer na madrugada de 24. E aqui estamos em pleno dia. Provavelmente é apenas uma vista da praia dita “do relógio” que, aliás, ainda não existe...