Estes dias que passam 326
Verão tímido, dias de preguiça
(e a morte ao longe)
mcr, Julho 2019
Já alguém deu pelo Verão? Estes dias de névoa matinal, temperaturas à volta dos vinte graus, sol raro desmentem o calendário. Quando era menino, nem um tempo destes me fazia perder a praia e o mar. Como se fosse (e era!) imune a estas temperaturas dúbias. Aliás o mar parecia mais quente (ou menos frio...) e a nós, os do grupo da “praia”, pouco se nos dava o mal humor do tempo. Férias eram férias, ponto final, parágrafo. E amanhã estará sol.
Será por ainda me lembrar desse “dolce far niente” que mesmo com vários textos escritos e prontos, nem um publiquei. Também é verdade que fui para Lisboa (este é um hábito mensal que consiste em visitar a minha excelente Mãe que, à beira de (per)fazer 97 anos está tão bem quanto lhe é possível. Perdeu (e isso é mais do que um desgosto, um autêntico drama) muita visão o que a impede de ler um dos seus prazeres e hábitos favoritos. Também ouve mal e anda com a ajuda de uma bengala. Mas a vivacidade está igual, mesmo quando se queixa, o humor e a auto-derisão continuam, vive sozinha (há uma empregada contratada para a acompanhar mesmo de noite mas, para já, a old lady mantem-na longe. ) e faz tudo. Só não sai de casa. Nós, os filhos, oferecemos-lhe uma cadeira de rodas com a vaga ideia de que assim poderia ir comer sardinhas assadas (e, no Inverno, cozido à portuguesa) onde isso se faz decentemente. Mas ela já não está para essas cavalarias. Vou tentar encontrar um restaurante perto onde em poucos minutos compre as sardinhas e as traga ainda quentes. Em casa ninguém consegue assar sardinhas na brasa. Nem os pimentos.
No resto, que ainda é muito, e para nós, filhos, netos e bisnetos, tudo, ela permanece. Como uma rocha!
E os textos no tinteiro, ou seja no computador, prontos a ser lidos por quem tiver paciência. Sairão hoje.
Mas antes, um pensamento, para o António Hespanha. Conheci-o em Coimbra, foi mesmo meu colega. Na altura não era exactamente, ou só, um militante católico. AH foi um dos rostos da Direita estudantil, fez parte das listas de Direita candidatas à direcção da AAC. Não foi o único a mudar de posição mas foi com certeza um dos que mudou com maior estrondo. Militou no PC uma boa dúzia de anos, o que, depois de Praga, do conflito sino-soviético, do gulag, de Maio de 68, é obra. Foi uma reviravolta de 180 graus.
Isso, todavia, não o impediu de criar uma obra histórica importante de exercer um mestrado de influência. O “Público” de hoje consagra-lhe duas inteiras páginas, com chamada e fotografia na primeira página e ele merece a homenagem. E não merece o apagamento biográfico e político discreto. Nós somos sempre tudo o que fizemos e pensámos. E isso nunca diminuiu ninguém.
Hespanha não foi o único intelectual de Esquerda vindo dessa Coimbra universitária de Direita dos anos sessenta. Bem pelo contrário, foram vários e relevantes os seus companheiros de percurso. Mesmo que lhes estranhemos a conversão tardia e depois de 69 (uns) ou de 74 (outros). Ou o recém-descoberto radicalismo que manifestaram. Também isso faz parte do mesmo processo de abandono de uma igreja por outra. Até se desvanecerem ambas. No meio do pântano onde tantos permaneceram, eles, pelo menos, tiveram a coragem das suas opiniões. E mais ainda, a coragem de as aabandonarem quando se deram conta da realidade.
*a gravura: casa de Curzio Malaparte, um escritor muito cá de casa, em Capri. CM é um exemplo do intelectual que mudou de opinião e disso deixou vivo e brilhante testemunho. A casa é um portento. pena não a poder mostrar melhor.