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Incursões

Instância de Retemperação.

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Instância de Retemperação.

Estes dias que passam 328

d'oliveira, 11.07.19

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O cronista desconfiado

mcr 11.7.19

 

 

Nem sempre fui desconfiado, bem pelo contrário. Na minha meninice tardia (já lia livros se bem que em voz alta) a avó Aldina (a “Velha Senhora”, visitante antiga desta página) explicou-me o Natal. Não, o menino Jesus não vinha ver a árvore (naquele tempo o Pai Natal todo de vermelho via Coca-cola, ainda não era o intruso tremendo de hoje), era a família que presenteava a criançada que mal conseguia dormir de 24 para 25 (lá em casa era no próprio dia que estremunhados e ansiosos íamos, o meu irmão e eu, quase de madrugada, enfim pelo raiar das 8 da manhã, ver o que se passava junto dos nossos sapatinhos, à sombra da árvore.

Mais tarde, depois de acreditar ferreamente no que contavam Júlio Verne, Emílio Salgari e Edgar Rice Burroughs (o cavalheiro do Tarzan que li integralmente na colecção “Terramarear “ de origem brasileira e presente na Biblioteca Pública Fernandes Tomaz, na Figueira da Foz, tive que me render à evidência. Tudo aquilo provinha da imaginação formidável dos autores e, no caso de Burroughs, a África é bastante fantasiosa pois o autor nunca lá pôs o pé.

Já Verne é um estudioso, um leitor de mapas e revistas científicas e um formidável explorador de futuros prováveis a que, entretanto, consegue juntar num cenário de viagens pelos mais recônditos cantos do mundo, aventuras e heróis que as vivem vitoriosamente graças ao seu conhecimento científico. Salgari, marinheiro e viajante parte de princípios semelhantes e sobretudo de um apertado conhecimento de geografia para, também ele levar os seus heróis por mundos ainda mal descobertos, A Asia, as Américas o Extremo Oriente que os seus leitores iam conhecendo através de jornais e revistas de notável qualidade e extensamente ilustradas.

Tudo isto, toda esta digressão sobre os livros que povoaram a minha infância e primeira juventude, para explicar que sempre tentei perceber o mundo desconhecido pela leitura. Quando cheguei a África, à África verdadeira e não apenas às grandes cidades mas muito ao “mato” onde um branco era quase uma (nem sempre recomendável) novidade o choque foi notável. Aos quinze anos, mesmo sem o saber, já tinha uma obscura consciência dos males do colonialismo, mesmo se não fosse ainda capaz de objectivar claramente o sistema. Mas já sentia como injusto o “contrato”, as culturas obrigatórias (sobretudo o algodão) a injustiça do imposto em moeda no caso de populações onde ela não existia e onde a economia era de subsistência, a brutalidade boçal de muito colono e a inexplicável ausência de negros no sistema de ensino secundário. E não gostava de missionários. E achava lindíssimos os “manipansos” ou seja alguns objectos de arte africana que, sei lá porquê me pareciam extremamente expressivos. Ao invés, a maioria dos nossos conhecidos, mesmo dos interessados em “arte indígena” (!!!) adorava encomendar aos escultores makonde Nossas Senhoras, caravelas e peças para jogos de xadrez, tudo muito “africano” como se vê. Também havia encomendas de máscaras que, de modo algum, correspondiam às máscaras correntes nas culturas locais! Porém, isto era apesar de tudo um vago sinal de interesse – não vou ao exagero de falar em respeito- pelo outro, pelo negro (em português colonial pelo “indígena”). Desse curto período da minha irrequieta mocidade ( acrescentado a três outros - longos, longos- períodos de férias grandes quando já estava na universidade. Nasceu aí e continua em crescendo uma paixão por África, pelas civilizações ditas “primeiras”. Na minha caótica biblioteca jazem milhares de livros sobre África (história, arte, geografia, etnologia, dicionários e línguas além de, obviamente, tudo o que tenho apanhado sobre a “expansão colonial portuguesa” , termo propositadamente ambíguo como é sabido mas que dá imenso jeito nesta época de anti-colonialistas ignorantes e de saudosos do império igualmente néscios.

Neste capítulo incluo aquele vereador patarata que descobriu o mal absoluto no Jardim   da Praça do Império frente aos Jerónimos. Havia por lá uns canteiros representando os brasões das colónias. O pobre diabo nem hesitou: acabem-se os canteiros e assim purifica-se a história pátria! Queira ou não esta criatura, a História fica para além dele e o seu gesto tolo só a torna mais ininteligível. E mais boçalmente ideológica...

Vem tudo isto a propósito de um texto da srª doutora Fátima Bonifácio a quem a passagem acelerada dos anos terá toldado a agudeza. O texto, pobre dele, é ml amanhado, confuso, parte de pressupostos racistas , esquece que em Portugal foram assimilados e se perderam na voragem dos séculos muitas dezenas de milhares de negros trazidos como escravos. Esquece igualmente o que devemos a inúmeros “mestiços” (e só vou citar Almada Negreiros) sem falar na pujante presença de negros na cultura americana mormente na música e nas letras ou em França (também só cito Alexandre Dumas) para não falar de países onde a presença de intelectuais de “cor” (incluindo prémios Nobel) é corriqueira. Tudo sem “quotas”, notem bem.

Li hoje que um professor universitário de origem moçambicana mas residente em Portugal onde, aliás, exerce, entende a obrigatoriedade de quotas como um último e perigoso sinal de paternalismo racista branco. Não direi tanto mas temo bem que não esteja totalmente longe de alguma verdade.

O texto da senhora Bonifácio merece ter o mesmo destino que Camilo augurava a uma carta recebida: passar ao ventre da mãe terra pelo esófago da latrina!

Porem, a notícia, também de hoje, de um grupo de personalidades entendeu apresentar queixa crime contra a referida senhora. A notícia curta não explicita com clareza a base jurídica da queixa e sobretudo mesmo que seja aceite, não destrói a argumentaçãoo da autora. Apenas a transporta para o eventual paraíso dos acusados de delito de opinião. A opinião da historiadora deve ser combatida pelas opiniões dos queixosos. E espera-se que escrevam com mais clareza o que querem. E também apareceram no mesmo jornal onde o artigo saiu apelos a que se proibisse qualquer outra publicação de textos da referida autora. Há até uma senhora que o faz em nome da sua “assinatura” do jornal. Eu, que leio e pago o Publico desde o primeiro dia não me sinto defraudado. Como não me sinto atacado por tantos outros textos em que algum “ódio de classe” de duvidosa origem e de mais que duvidosos antecedentes, lá publicados. Bastaram-me os anos de leitor de jornais entre 1958 e 1974 onde a verdade era só uma e a censura se cevava à vontade nos textos vagamente discordantes. Fui alvo desse lápis azul muitas vezes (na Vértice, no Comércio do Funchal entre outras publicações) para concordar agora com qualquer espécie de censura.

O meu amigo Joaquim Namorado, que viveu e morreu comunista puro e duro, afiançava que estava disposto a colaborar num pasquim dos anos sessenta (o “Agora”) desde que o deixassem dizer o que queria. E remetia para os leitores o julgamento crítico do que defendia. Vivemos numa repelente época do politicamente correcto. Ainda há poucos meses, um grande e excelente jornal americano pedia desculpas por ter publicado uma caricatura do excelente António em que Trump e Netaniahu apareciam um de kipá e o outro à trela. E acabava com a publicação de caricaturas, cedendo assim aos lobbys mais assanhados de Israel e dos EUA.

Somos nós, o público, os leitores, os inconformados, quem perde. E a vitória dos fanáticos torna-se perigosamente mais viável. À falta de contraditório... À falta de opinião....

 

 

 

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