estes dias que passam 327
as injustiças do ensino
mcr (Junho 2019)
Uma comissão, mais uma, descobriu (oh pasmo tremendo! Oh surpresa inenarrável!!. Oh, Oh, oh, oh três vezes oh!!!) que os filhos dos mais instruídos tem mais possibilidades de frequentar cursos de prestígio do que os filhos das classes menos afortunadas do ponto de vista da instrucção!...
Ai, pobre de mim, que profeta em terra própria, descobri essa amarga verdade quando acabada a escola primária vi que apenas mais dois colegas iam comigo para o liceu e outros tantas para a Escola Comercial e Industrial. Os restante trinta e tal iriam engrossar as tripulações das bateiras, lanchas, traineiras, e arrastões que aquela praça armava. Isto significava que nós os três (2 filhos de médico, e 1 de industrial) nos destinávamos a uma profissão nobre (e mais bem paga) enquanto os da Escola teriam a sorte de ser empregados e comércio ou electricistas, carpinteiros ou marceneiros, de todo o modo um eventual progresso naquela população quase só feita de pesadores e mineiros.
Durante os quatro anos de primária já tinha descoberto que só na nossa casa havia livros, coisa tão natural como sapatos (também só na nossa casa) e uma empregada doméstica que na altura se chamava criada de servir. (a propósito, as criadas de servir da minha infância, eram quase da família e nós mantivemos com todas – já não resta nenhuma – laços de amizade e de certa familiaridade. Para várias, eu e o meu irmão fomos sempre “os meninos” tratados por tu como Deus manda sendo que uma, a saudosa Deolinda, ao visitar-me muitos, muitos, anos depois me disse Ai Marcelito como tu cresceste. Pudera não que a coisa ocorreu quando eu tinha já quarenta anos!).
Parece que a dita comissão descobriu que 68% dos filhos de médicos, advogados e engenheiros frequentavam cursos prestigiados na Universidade. Em contraponto outros tantos 60 ou 70% de filhos de cidadãos com instrução não universitária andariam no politécnicos e em cursos menos ribombantes!
A comoção que esta descoberta da pólvora seca provocou deu azo a discussão na televisão onde circunspectos cavalheiros e damas da nossa melhor inteligentsia progressista bramiram que faltava cumprir o 25 de Abril.
Por acaso, mero acaso, claro, foram estas mesmíssimas criaturas que aplaudiram com as duas mãos a baixa generalizada de propinas universitárias não cuidando de distinguir ricos de pobres. Com um pouco de imaginação poderiam antes ter criado mais e melhores bolsas para estudantes oriundos de meios menos favorecidos de modo a que estes pudessem enfrentar as despesas de uma universidade, sobretudo no domínio do alojamento. Com a mesma escassa imaginação poderiam pensar em seguir (desde os primeiros anos de escolaridade) os alunos que se distinguissem, fornecendo a estes meios especiais de vida para poderem competir com os meninos oriundos de famílias mais privilegiadas. Com mais uma pisca de imaginação poder-se-ia criar um sistema especial de bolsas para permitir que estudantes vindos de meios menos afortunados frequentassem os tais famosos colégios de elite que obviamente preparam os seus alunos para as melhores escolas nacionais e internacionais. Porque é no ensino dito secundário que a selecção ainda pode ter sucesso e permitir que o elevador funcione.
É evidente que, para se detectar com a maior rapidez e brevidade o talento, haverá que criar provas de aferição sérias que ultrapassem a trapaça do ensino actual onde o sucesso de todos, ou quase, esconde as diferenças e a ignorância e permite a injustiça que, depois, é alvo de queixume.
Também não deixa de ser evidente que entre uma casa onde há livros e outra sem eles o mais provável é que na segunda o nível da exigência familiar seja menor. E o da esperança num melhor destino, idem. Ou da ambição!
Enquanto houver ricos e pobres (ou ricos e menos ricos) haverá diferença no destino dos filhos. Provavelmente, porque são diferentes o meio cultural, a ambição, as relações familiares, a ideologia de classe, os preconceitos, os hábitos. Nada disto é redutível a qualquer espécie de igualdade natural ou forçada. Não o foi em nenhum regime pretensamente igualitário (nem vale a pena falar da utópica União Soviética onde a classe dirigente se governou e onde os aparatchiks guardaram ciosamente para si e para os seus todos os lugares valiosos. O elevador social nunca funcionou e nos casos raros em que pareceu ter importância, foi a ambição e o zelo partidário que deram a um escasso número de militantes fieis (e mais papistas do que o Papa) um lugar diferenciado do da maioria esmagadora da população e mesmo da maioria do Partido.
Nos EUA, as minorias só chegam às universidades mais prestigiadas graças fundamentalmente ao mérito desportivo e a quotas impostas. De longe a longe, alunos distintos do secundário conseguem o mesmo, obtendo bolsas de estudo dos próprios estabelecimentos universitários. Yale ou Harvard, para não citar uma vintena de outras grandes universidades, tem custos proibitivos e para um pobre mesmo com excelente preparação escolar a entrada é semelhante à da parábola bíblica do buraco da agulha. Aqui, entretanto, são os ricos que entram no “reino dos céus”.
As lacrimosas constatações da comissão e de um quarteirão de personalidades comentadoras e putativamente generosas esbarram num pequeno problema: soluções! Soluções simples, evidentes, democráticas. Soluções que garantam, após aferição séria, que os bons alunos conseguem, mesmo sem meios de fortuna, frequentar as melhores escolas (públicas ou privadas) e levar a cabo um percurso educativo valioso e libertador. Provavelmente, seria melhor criar condições para a existência de uma verdadeira classe média que extravase da que só é alimentada pela função pública (ela própria cada vez mais dependente do poder político e das simpatias partidárias) e que ultrapasse o funil das “jotas” partidárias que dividem os poderes fácticos e políticos todos.
Sem isso, tudo é conversa fiada, sentimentalismo bacoco e caridadezinha classista