Estes dias que passam 329
Também se morre no Verão
Ontem foi um dia nefasto. De uma só penada foram dois os desaparecimentos: Andrea Camilleri e Johnny Clegg.
Do primeiro já aqui falei várias vezes. Fundamentalmente, referi os seu romances policiis (série Montalbano, cerca de trinta títulos) mesmo se, para além desses e igualmente com grande mérito tenha publicado mais outras quarenta obras. Curiosamente, Camilleri foi um autor tardio, sobretudo no que se refere à novela policial, começada já depois dos setenta anos. E foram sobretudo esses romances os que o tornaram extremamente conhecido não só em Itália mas também no resto do mudo com particular incidência para a Europa onde está publicado quase na totalidade. Em Itália chegou a ter seis ou sete títulos na lista dos dez livros mais vendidos. Está traduzido em Portugal (uma meia dúzia de títulos, pelo menos) e toda a sua produção policial foi alvo de filmes produzidos pela RAI. Ainda há poucos meses, a RTP 2 passou durante semanas a grande maioria deles.
Camilleri faz decorrer a acção do “seu” Comissário Montalbano na pequena cidade de Vigata , na Sicília, sua ilha natal. Não é, todavia,a Máfia o alvo principal mesmo se esteja sempre presente. Na maior parte dos casos, os casos do comissário são os típicos de uma pequena cidade italiana a que não falta, aliás, a presença de “extra-comunitários” quer oriundos do Leste europeu quer do Magrebe. Como qualquer outro escritor siciliano (e eles são tantos e tão excelentes) Camilleri insiste –mesmo não carregando nas tintas – na singularidade insular, coisa aliás mais presente ainda nos romances não policiais. Terá sido essa exemplaridade que o tornou conhecido, respeitado e muito lido em toda a Itália. E no resto do mundo, pelos vistos tal a quantidade de edições em línguas estrangeiras.
De todo o modo, eis um autor a não perder. E para os mais afortunados vale a pena recomendar os filmes (conheço duas edições: a italiana e a espanhola. Autenticas pequenas pérolas de cerca de hora e meia. Ao que sei há pelo menos 18 já realizados.
O zulu branco.
Com 66 anos, eis que se despede Johnny Clegg, músico importantíssimo da África do Sul cuja história recente – desde os tempos do apartheid – ilustrou como poucos.
Clegg, branco foi um profundo conhecedor da cultura e sociedade zulus, aliás concluiu mesmo uma licenciatura em Antropologia sobre esses grande grupo (o maior na maioria negra) sul africano. Falava a língua com desenvoltura e os seus amigos consideravam-no um autentico mestre da dança tradicional zulu. Contra todas as proibições, desde muito jovem, começou a interessar-se pelo povo zulu de onde era originária a grande maioria dos trabalhadores negros emigrados em Joanesburgo. Foi com eles que primeiro aprendeu os conceitos básicos da grande tradição zulu e com eles começou a fazer música, misturando o rock e o pop à música tradicional africana. Cedo constituiu uma (proibidíssima) banda e cedo começou a publicar (algumas vezes em co-autoria) canções onde perpassavam a temível realidade sul africana, os medos e as esperanças da comunidade negra e de alguns brancos não conformes com o regime. Tal actividade não lhe poupou a prisão, obviamente. E o exílio, aliás. Começou por isso uma carreira internacional, sempre com uma banda mista e é autor de um dos grandes hinos anti- apartheid, “Asimbonanga” dedicado a Nelson Mandela. Curiosamente, durante um concerto já na “nova” África do Sul , o Presidente Mandela apareceu de improviso no palco de um dos seus concertos a dançar aquele hino. E a abraçar o músico branco que desafiara tudo e todos, dentro do próprio país ao criar uma banda (Juluka) bi-racial e ao cantar para todos os sul africanos sem excepção.
Músico talentoso, grande dançarino, o zulu branco provou, quase só, que a resistência dos brancos era possível como era possível uma nação arco-íris. Só isso já faz um grande homem.