Estes dias que passam 332
Votos piedosos e medo de explicar o passado
mcr, sext feira, 13, 49 anos depois do óbito por mim mais desejado da segunda metade do sec- XX)
Parece que o Parlamento entendeu lavrar m voto contra o projecto do museu Salazar ou, mais exactamente, do Centro de Interpretação do Estado Novo. O voto terá sido aprovado por PS, PCP e BE & acólitos respectivos. O PPD e CDS ter-se-ão abstido. Segundo li no jornal trata-se de “impedir romarias ao local de (eventual) culto salazarista”
Claro que isto é o chamado fim de festa estival da AR, altura em que o Parlamento avia, a trouxe-mouche, dezenas de votos, moções e se desdobra em declarações para memória futura.
Pessoalmente, enquanto adversário do Estado Novo desde 1958, com largas dezenas de manifestações de permeio, duas crises académicas, quatro prisões e muita bordoada no lombo, para não falar em centenas de abaixo assinados, participação activa na única eleição em que a Oposição foi até às urnas (fui fiscal numa mesa eleitoral, um dos poucos, por sinal que se arriscaram), autor de dezenas de escritos, quase todos censurados em todo o tipo de publicações com destaque para a “Vértice” e para “O Comércio do Funchal”, o famoso e aguerrido “jornal cor de rosa”, lamento esta perdida oportunidade para verificar algo de que desconfio desde há muito: o dr. Salazar está “morto e apodrece” e poucos ainda sentirão o seu coraçãozinho e restantes vísceras vibrar ao ouvir o seu nome.
Vejamos. Salazar morreu há quarenta e nove anos mas estava afastado do poder há 51, graças a uma cadeira subversiva e bolchevista que, caindo, o arrastou na queda e lhe provocou danos irreparáveis na cabeça antiga e manhosa.
Assim sendo, os que ainda se lembram da criatura e, eventualmente, o veneram deverão andar pelos setenta anos, vá lá sessenta e cinco (para casos de grande precocidade política como depois de 74 já sucedeu, vejam-se os casos de Costa ou Louçã)
Convenhamos que não é especialmente crível que esta velharia a cair da tripeça se junte em ruidosa romaria e desande, todos os anos, ou todos os meses, para Santa Comba Dão para, comovida e “patrioticamente”, louvar o ex-Presidente do Conselho e ao mesmo tempo cantar o “Angola é nossa”, o Hino da Restauração ou o “... tronco em flor estende os ramos à mocidade que passa...”..
Seria aliás deliciosamente ridículo ver todas essas ruinas humanas com a velha farda de legionário ou, cereja no bolo, com a fardeta da Mocidade Portuguesa (que de resto, já não era obrigatória desde os primeiros anos 50) com o famoso cinto com S e tudo... E em rigoroso sentido, aos vivas ao velho ditador, à Pátria e ao Império que vai do Minho a Timor.
O salazarismo foi uma doença endémica misto de oportunismo, medo, sacanice e raras, raríssimas, fidelidades ideológicas. A partir da queda de Rolão Preto (1934) e das cisões verificadas no movimento nacional sindicalista, aquilo, a tentativa de génese de um verdadeiro movimento fascista em Portugal, desintegrou-se com meia dúzia de prisões por curto espaço de tempo mas com duradouras consequências. Rolão Preto, que, em 33, num famoso comício, se proclamara anti-salazarista acabou, muitos anos depois, por se juntar à Oposição Democrática, primeiro ao MUD, depois apoiando Quintão de Meireles e mais tarde Humberto Delgado. Esta trajectória comum a muitos outros servidores devotados do Estado Novo (lembremos, por todos Henrique Galvão ou Norton de Matos o putativo pai do “milagre de Tancos”) mostra bem como a política nacional andava naquela época.
Justamente por isso, para descortinar alguns fios condutores da moscambilha lusitana, talvez valesse a pena o tal Centro Interpretativo. De todo o modo, duvido que durasse muito que isto de estudar a história recente é pior do que “cavar em ruínas”, Camilo que me desculpe. Andamos desde há anos a celebrar bacocamente uma 1ª República sem fazer o mínimo esforço de separação do trigo e do joio. Andam por aí una livrinhos patuscos onde as glórias republicanas são exaltadas enquanto os atentados, a “formiga branca” a famosa “camionete dos assassinos” de Granjo e Machado dos Santos, o inacreditável número de governos mais de quarenta em dezasseis anos, os pronunciamentos, a “artilharia civil”, a perseguição encarniçada aos sindicatos e as centenas de mortos por violência política são silenciados, obliterados do mesmo modo que foi esquecida a diminuição para menos de metade dos insritos nos cadernos eleitorais vindos do fim da monarquia. Mas foi tudo isto, mais a dementada perseguição da Igreja e dos católicos em geral e o desastre económico que levou o país inteiro a assistir impávido ou cúmplice ao passeio militar de Gomes da Costa (um herói republicano que meteu Mendes Cabeçadas, outro que tal, na algibeira e lhe roubou o poder de que apressadamente se reclamava. Acabaram ambos na inexistência política, mesmo que o segundo tenha tentado sempre sem sucesso animar o “reviralho”)
Salazar governou todos aqueles anos por algum mérito próprio mas, sobretudo, por demérito profundo e absoluto de adversários. Foi a guerra nas colónias, uma longa guerra de usura e de baixa intensidade, que atirou o Estado Novo para as catacumbas. E foram os militares (os mesmos ou algo do mesmo género e substância dos de 1926) que, depois de terem trazido o cavalheiro de Santa Comba a S. Bento, retiraram o seu sucessor do quartel do Carmo. E, num ápice, entre o 25 de Abril e o 1º de Maio, o país vestiu-se de vermelho e do nada surgiram multidões compactas de democratas
Não se sabe de onde surdiram tantos e tão devotados amigos da liberdade mas talvez valesse a pena tentar traçar-lhes o eventual rasto durante o último decénio de Estado Novo. Ora aí estaria uma excelente missão para o fantasmático “centro interpretativo”.
Quanto aos restantes argumentos da Câmara Municipal de Santa Comba Dão e especialmente o desejo de aumento de turismo graças ao Museu ou a algo do mesmo teor, estamos conversados. A documentação de Salazar está toda em Lisboa nos arquivos da Presidência do Conselho de Ministros, na Torre do Tombo. Bens pessoais, além de escassíssimos são absolutamente irrelevantes. Fotografias irrelevantes, um par de panelas alguns pratos duas camas desconjuntadas na velha e pobre casa do ditador. Eventualmente, o último par de botas com as solas em miserável estado. A criatura era pouco dada à acumulação de quaisquer bens e disso se fazem eco amigos e inimigos. Aquilo era um eremita cuja criada para todo o serviço criava galinhas no quintal de S. Bento. Está tudo dito.
O voto parlamentar é um tiro de pólvora seca, num jogo de batalha naval sem barcos. Uma só coisa me espanta: o voto do PPD e do CDS. Que significado político tem aquela abstenção? Haja quem me ilumine e me explique estes dias de “muito barulho para nada”.
(à margem: vários amigos que muito prezo enviaram-me mails com o convite para me abaixo-assinar contra o tal museu. Ser-me-ia fácil fazê-lo. Nada fiz por entender que aquilo não era guerra que valesse apena. Com dois deles vim à fala e, curiosamente, ambos me disseram que só tinham assinado por desfastio sem acharem que a ideia do museu valesse sequer a pena tanto mais que, desde sempre, se afirmara que nem um cêntimo dos dinheiros públicos iria para ali. Até por isso valia a pena ver o projecto tentar seguir em frente. Aposto dobado contra singelo que dos particulares também não viria dinheiro que se visse e muito menos o suficiente para criar sequer uma casa museu sobre as ruínas da actual casa que foi de Salazar. Em boa verdade, até aposto três contra um...)
* na gravura um fotografia de Rui de Melo sobre os despojos da casa de Salazar