estes dias que passam 333
Morte, onde está a tua vitória?*
mcr 4-X-19
As televisões, por um momento subitamente graves, o Governo a proclamar um dia de luto oficial, os comentadores, unânimes, a louvarem um político morto bem antes de morrer, o súbito reconhecimento de que havia menos um “pai da democracia de Abril”, enterram, pela segunda vez, Diogo Freitas do Amaral.
Sob um aparente aluvião de louvores, está (estava) alguém que alguma vez afirmou “ter vivido no ostracismo”. Um jornal, o Público fala num “homem só”. Surgem, em catadupa, amigos que, pelos vistos (é ele que o diz ao falar de ostracismo), andaram por í ligeiramente esquecidos. Até os adversários curvam respeitosamente a cabeça e endereçam à família do finado as suas mais sentidas condolências.
Sob o manto pesado dos elogios, resta a solitária nudez de alguém politicamente morto desde há muito.
Resta a este comentador ocasional recordar, da sua experiência pessoal e política um que outro facto de que foi testemunha.
Comecemos, como dizia um imortal professor de Direito, pelo princípio. Em 1972, frequentava eu o 3º ciclo da Faculté Internationale pour l’Einsegnement du Droit Comparé quando ouvi, pela primeira vez o nome de Freitas do Amaral. E pelas piores razões: Frequentavam a mesma faculdade, se bem que noutros ciclos dois ou três estudantes de Lisboa que, ao saberem que DFA poderia vir a reger um curso logo se insurgiram contra a sua presença argumentando que era um fiel servidor do regime opressivo da Faculdade de Direito de Lisboa e um fascista. A alma da FIEDC, madame de Solá y Canizares convocou-me, por já me conhecer, para lhe prestar qualquer informaçãoo sobre a criatura. Lealmente respondi que o não conhecia, que nada sabia dele e por isso mesmo não tinha qualquer posição sobre o assunto. E, de passagem, lembrei que o Professor Marcello Caetano, na altura Chefe do Governo, era presença assídua na FIEDC o que punha um problema difícil.
De todo o modo, se porventura Freitas fora convidado, a verdade é que não apareceu.
Logo a seguir ao 25 de Abril, surgiu, à frente do CDS um partido que se reclamava da Democracia Cristã e onde se refugiaram muitos dos antigos seguidores do Estado Novo.
Num país que durante alguns anos viveu crispado, o CDS era um inimigo a abater muito mais do que os pequenos e efémeros grupos que se criaram e desfizeram à Direita. A coisa culminou com as violentíssimas manifestações contra o Congresso do CDS no Palácio de Cristal (Porto) organizadas pela extrema Esquerda (e com o apoio tácito de muita gente incluindo dirigentes regionais do PC e do PS). Desse grupo, destacou-se o MES que numa reunião tremenda se recusou a apoiar o cerco, o que valeu ao seu porta voz críticas duríssimas.
O percurso seguinte do CDS, sob a batuta de Freitas e com um extraordinário Adelino Amaro da Costa como principal estratego, levou o partido ao Governo quer com o PPD (Aliança Democrática) quer com o PS. De todo o modo, muito europeu ou não, muito “democrata-cristão” ou ainda menos, o CDS nunca conseguiu (sobretudo depois da trágica morte de amaro da Costa) deixar de ter na opinião pública a imagem de um partido de Direita, conservador e com fortes laivos de ligação ao anterior regime.
A disputa eleitoral com Mário Soares pela Presidência da República exacerbou em muitos a ideia de um DFA reaccionário e profundamente conservador. Seria útil ler as reportagens, as notícias eas declarações dele na altura para se poder aquilatar do que estava em causa e do que o diferenciava de Soares, um candidato, esse sim, da Esquerda Moderada e do Centro (lembremos que Soares evidenciara a sua posição durante a corrida à candidatura quando se confrontou com Maria de Lurdes Pintasilgo e com Salgado Zenha sem esquecer a presença constante do candidato comunista.
Há actualmente a tentação de considerar como clara e insofismável a situação de oposicionista ao Estado Novo de muitos que, por razões variadas, não juravam uma lealdade a 200% ao regime. Em boa verdade, desde que surdiu das trevas do 28 de Maio, o Estado Novo, segregou, dentre o seu quadrado de fieis, muitos oposicionistas tardios desde Henrique Galvão a Humberto Delgado ou Rolão Preto. Até Craveiro Lopes (e Botelho Moniz) acabaram por ser afastados por Salazar que, com alguma razão, duvidou da sua fidelidade.
É, agora e tarde, voz corrente que DFA recusou vários lugares durante o antigo regime mesmo se Marcello Caetano seu professor e, de certo modo, seu “maître a penser” (pelo menos enquanto jurista...) o tivesse insistentemente convidado. Daqui, inferiu-se que o futuro líder do CDS era um democrata e, eventualmente, um resistente!
Em boa verdade, mesmo nos anos agónicos do fim do Estado Novo, fora o pequeno grupo de oposicionistas de sempre, engrossado pela ex ala liberal (Sá Carneiro, Balsemão & amigos) e pelos católicos que, pouco a pouco, e bem timidamente, se vinham afastando da tradição de colaboração activa com o Estado Novo, a multidão democrata era reduzida e, genericamente, perseguida. Não estava na bicha para a mesa do Orçamento, não conseguia entrar na Função Pública a simples menção pela PIDE/DGS de “politicamente suspeito”, relegava muita gente para a periferia social e económica. O exemplo mais marcante era dado pela tropa. Os oficiais milicianos iam ou não para os palcos de guerra consoante as suas opiniões políticas ou a mera suspeita delas. E até nas armas se notava isso. Por exemplo, para a Marinha iam apenas ou quase só os juristas bem comportados ou, pequeníssima excepção, os com altas classificações na Universidade. Os suspeitos apanhavam com o “mato” onde a guerrilha era mais perigosa...
Ainda na mesma linha de exaltação da oposição democrática patente em DFA avulta o já citada recusa de cargos políticos. Convenhamos: ele terá terminado a universidade em 64. Depois teve de frequentar o 6º ano de Direito e começar o percurso de preparação do doutoramento que naquele tempo não era longo mas longuíssimo. Para quem quer seguir uma carreira universitária (e DFA seguramente queria-o) todo aquele tempo foi pouco e curto para se permitir devaneios políticos que, ainda por cima, e a fazer fé nos seus admiradores actuais, não eram especialmente entusiasmantes. Daí até se vislumbrar uma forte fé democrática e pronta a qualquer sacrifício vai um passo de gigante.
Todavia, também não de põe em dúvida que, com o advento da liberdade, muitas vocações latentes terão florido e entre elas a de Freitas do Amaral, porque não? Pode mesmo ter decidido por, um pouco, entre parêntesis a sua indubitável veia académica e querer participar na refundação de Portugal, no caminho para a Europa e na democracia cristã. Porém, e a história da 2ª metade do século XX bem que o prova, a “democracia cristã”, à moda italiana ou alemã, não era, nunca se posicionou, ao Centro mas claramente à Direita. Direita democrática, crente nas instituição republicanas, no Estado laico, nos Direitos Humanos mas Direita sempre, mais ou menos conservadora consoante os tempos e as modas. E foi isso que DFA foi ou pareceu ser mesmo se, como também agora se disse, a sua inabalável fé no “centrismo”. Num centrismo neutro, a meio caminho entre as duas opções que marcaram a história dos regimes democráticos. Aliás, o “centrismo”, tal qual o descrevem era, é, uma pura abstracção mesmo se as abstracções deste teor encontrem entre os juristas um campo de eleição para florir.
Convirá, porém, salientar que, se não foi um revolucionário, um resistente, sequer um conspirador também não foi nem de perto nem de longe o ogre fascista dos anos de brasa. Nem o reaccionário que muitos (e entre eles haverá alguns dos que agora esquecidos do que então disseram) garantiam que ele era. Era apenas um conservador inteligente e culto devorado pela política a quem cedo faltou o grande companheiro que com ele fundou o CDS: Adelino Amaro da Costa. (eu atrever-me-ia a dizer que, depois da morte de AAC no trágico acidente que também vitimou Sá Carneiro, o CDS ficou órfão de um ideólogo capaz de encontrar a formula de sucesso para um partido democrata cristão em Portugal)
As eleições para a Presidência da República, onde foi batido, por uma unha negra, por Soares, marcam o fim da carreira política de Freitas do Amaral. A partir daí nem no CDS (antes de Paulo Portas) que se ia transformando paulatinamente em “partido popular”, com dirigentes prestigiados (Lucas Pires ou Adriano Moreira) em que, apesar de tudo, as “bases” não se reviam ou com alguns aventureiros (por todos: Manuel Monteiro, uma espécie de salta pocinhas desgovernado) que nem sequer podem ser tomados por chefes de facção, nem fora dele, DFA “riscava” politicamente. Não era o ostracismo (como ele proclamou) mas apenas uma morte política a que tardava a certidão de óbito.
É verdade que, de longe em longe, DFA aparecia. E apareceu algumas vezes até surpreendentemente longe do berço centrista e democrata cristão o que aliás provocou a mesquinha vingança do envio da sua fotografia de fundador do CDS para o PS! Como Monteiro ou como Basílio Horta, outro candidato da Direita à Presidência da República e igualmente derrotado por Soares, que neste momento é presidente de uma Câmara com apoio do PS com que se congraçou no tempo de Sócrates, Freitas do Amaral percorreu ou pareceu percorrer um longo caminho das pedras até desembocar como compagnon de route do PS. Não creio, no entanto, que isso tenha servido muito a causa socialista ou a Esquerda em geral. Freitas era um general sem tropas e não D Sebastião emergindo do nevoeiro.
No momento do seu passamento, resta a figura de um intelectual dilacerado pelas vicissitudes de um país obrigado a transformar-se (se é que de facto se transformou), de um professor de Direito Administrativo que os alunos recordam com respeito, de um melómano cultoe de um autor multifacetado que tentou sem especial relevo dar a sua versão de parte da história de Portugal (biografias de Afonso Henriques e Afonso !!!, bem como um escrito sobre a Lusitânia).
De certo modo, é bem mais interessante a sua obra autobiográfica que fica como um testemunho interessante deste tempo que muitos de nós (aliás cada vez menos) vivemos.
(*Corintios 1-15)
na gravura: diogo Freitas do Amaral e Adelino Amaro da Costa