Estes dias que passam 335
Quousqe tandem...
mcr, 22.10.19
(esdevens hereu
dels dies de l’odi
i del degovern.
Salvador Espriu, La pell de brau)
Permitam-me os leitores dar ao folhetim um título ciceroniano. É que, de facto, anda por aí um abuso desconforme da ingenuidade (ou do desconhecimento) dos leitores a quem são atirados manifestos, declarações, abaixo-assinados e (uma concessão à modernidade) fake news de todo o tipo.
Agora é a Catalunha que dá o mote.
Indignados lusitanos reabrem a polémica da odiosa Castela e das inocentes nacionalidades periféricas.
Antes do mais e a este respeito, conviria dizer que Galiza, País Basco e Catalunha são realidades geo-políticas absolutamente diferentes. A primeira foi efemeramente um reino em meados do século XI mas desapareceu rapidamente em benefício da monarquia leonesa por um lado e da separação de Portugal, por outro. O País Basco nunca foi independente mesmo se no seu extremo nordeste tivesse existido uma nação, a Navarra que, com várias interrupções existiu entre oos séculos XI e XV. A Catalunha fez parte do reino de Aragão e depois da Espanha com os Reis Católicos. De per si, nunca foi um reino independente.
A língua galega depois do período de esplendor poético galaico-português foi pouco a pouco perdendo o favor das elites a pontos de apenas ser usada durante séculos por camponeses e pescadores (“labregos e marinheiros”). Mesmo no século XX os principais escritores galegos (Cela, Torrente Bsllester ou o enorme Valle-Inclan) escreveram em espanhol dando-me mesmo o caso do último deles ter proibido a tradução das suas peças em galego porquanto os galeguismos que ele usava perderiam todo o seu efeito estilístico. È verdade que outros (Rosalia de Casto, Castelao, Celso Emílio Ferreiro ou Luís Seone) usaram preferentemente o galego mesmo se não desdenhassem o espanhol. No País Basco aconteceu o mesmo; só os mais pequenos e humildes se mantiveram fieis à língua nativa e, de resto, desconhecem-se até há bem pouco textos cultos em basco. Na Catalunha a sorte da língua foi diferente porquanto nunca foi totalmente abandonada pelas elites mesmo se, excepção feita à poesia, a grande maioria da sua literatura tenha sido escrita em espanhol. E vale a pena recordar que, fora da Catalunha, os seus escritores só tenham atraído a atenção quando os seus textos foram vertidos para espanhol (pessoalmente, e desde os anos sessenta, graças a Ricardo Salvat, comecei a ler e a apreciar o catalão mas, confesso que nunca vi nas bibliotecas dos meus amigos um único livro em catalão. E foi-me difícil encontrar fora da Catalunha livros na mesma língua. E mesmo lá, deparei-me, vezes sem conta, com edições bilingues ou. quando monolingues, em duplicado, catalão e espanhol...
2 A Espanha construi-se lentamente. À uma porque se trata de um grande território que se foi unificando contra os ocupantes árabes. Depois, porque, durante a “Reconquista” se formaram reinos (Astúrias, Castela, Leão, Navarra, Aragão e Portugal que com dificuldade se uniam esporadicamente. Foi com Fernando e Isabel, os Reis Católicos, que a Espanha se pode considerar unificada dado que ao mesmo tempo, acabou a presença política árabe na península. E, nesse momento, já Portugal era um reino independente com séculos de existência arduamente defendida e conseguida umas vezes pacificamente (D Dinis e o Tratado de Alcanices – onde se fixou praticamente toda a fronteira hispano portuguesa-) ou militarmente, Aljubarrota, que garantiu definitivamente a independência de Portugal (o facto de três Filipes terem reinado durante sessenta anos em Portugal não diminui em nada esta afirmação uma vez que se tratava de uma monarquia dual. Estes reis eram-no de Espanha e de Portugal. Ao contrário do que muito boa gente pensa Portugal não tinha um estatuto idêntico ao da Catalunha. Ainda, há poucos dias, vi um historiador fazer um paralelismo entre as duas situações o que é um absurdo político-jurídico e uma mentirola histórica. É verdade que D João IV foi ajudado pela insurreição catalã na medida em que Espanha teve de lutar em duas frentes. Todavia, a frente catalã era mais importante por se tratar claramente de uma tentativa francesa de agressão a Espanha mais perigosa sobretudo por haver entre a França e a Catalunha uma fronteira comum que permitia a entrada de reforços e armas. Portugal, isolado entre a Espanha e o mar oferecia, eventualmente menos dificuldades militares. De todo o modo a guerra prolongou-se durante quase trinta anos. Não foi pera doce e conquistámos a nossa liberdade de acção à custa de enormes sacrifícios e, muitas vezes, praticamente sós (os Holandeses, os franceses e os ingleses tentaram e conseguiram, nesse período expulsar-nos de territórios na Ásia. No Brasil e em Angola as campanhas portuguesas foram longas, custosas mas ,finalmente, vitoriosas.
3 A Catalunha reapareceu (diferente) politicamente durante o conturbado período da 2ª República espanhola. Conseguiu a autonomia e um governo próprio e, de certo modo, conservou-o graças quase exclusivamente ao proletariado catalão (onde não faltavam fortes concentrações de emigrantes de outros pontos de Espanha) que conseguiu conter a revolta dos generais facciosos. E conseguiu-o também contra boa parte da burguesia catalã que, mais tarde, receberia entusiasmada e de pata ao alto (e “Cara al Sol”) os contingentes franquistas que entraram na cidade. (Bem diferente foi a sorte de Madrid onde as forças da República levaram a cabo uma formidável resistência contra as colunas franquistas. Foi em Castela e Leão, na Estremadura e na Andaluzia que os combates foram mais duros mesmo se o País Basco (ao contrário da Navarra) tivesse, juntamente com as Astúrias, resistido durante algum tempo. E justiça seja feita à frente de Aragão onde populares e forças anarquistas se bateram com denodo. A Galiza, terra de Franco caiu rapidamente e a Catalunha só caiu no fim da guerra por ser a região mais afastada da frente. Aliás, a estratégia franquista passava pela conquista do eixo Madrid Valência justamente para evitar uma luta em várias frentes o que, de resto era lógico de todos os pontos de vista.
E durante boa parte do franquismo o nacionalismo catalão não teve especial actuação. Por um lado as circunstâncias não ajudavam e, por outro lado, grande parte das elites políticas e financeiras da Catalunha sentiram-se muito à vontade nesses anos fatais. Porém, também não deixa de ser verdadeiro que na Universidade Autónoma, nos sindicatos e em zonas populares (onde aliás predominavam emigrantes) o PSUC (partido socialista unificado da Catalunha) versão catalã do PCE registava aderentes. Das restantes correntes políticas, desde a Democracia Cristã até à Esquerra Republicana são débeis –ainda que existam –os sinais mesmo se no exterior subsistia um governo catalão no exílio tão isolado e impotente quanto o governo da república no exílio. Quem fazia frente (a frente possível) ao franquismo eram os partidos comunista e socialista e os restos da FAI, Frente Anarquista Ibérica e dos seus sindicalistas que tinham sobrevivido (primeiro às tchekas depois aos franquistas). Já nos anos 60 e primeiros 70 não houve na Catalunha um movimento revolucionário com o peso da ETA mesmo se haja notícia parca do “Terra Lliure” a partir de 1978. Facilmente destroçado pelas autoridades este grupo independentista desapareceu por completo meia dúzia de anos depois.
Os partidos que reapareceram ou apareceram depois da instalação da democracia (entre eles a tradicional Esquerra Republicana e o mais recente Convengência i Unió são réplicas de partidos menos ou mais conservadores mesmo se a Esquerra se intitule social democrata. No principio deste século a social democrata Esquerra arvorava um par de slogans xenófobos que porventura agradaram aos seus seguidores mas claramente demonstravam a sua aversão a árabes, a africanos e também a emigrantes de outras comunidades. Todavia, como acenava com a hipótese independentista essa característica odiosa passou despercebida ou foi esquecida.
3 o nacionalismo catalão é curioso. De facto, a Catalunha é a par da comunidade de Madrid a mais desenvolvid e rica região de Espanha, Exporta para toda a Península e atrai sobretudo do sul fortíssimas vagas de trabalhadores sem os quais não sobreviveria. Um conhecido e reputado jurista catalão confidenciou-me uma vez sem tentar ser irónico que a Catalunha era “a única metrópole que queria libertar-se das suas colónias”.
Isto, se não diz tudo, diz, de todo o modo, bastante.
O renovado independentismo catalão acompanhou de certo modo outros independentismos que tiveram o seu momento nos idos de 60, a Flandres, a Córsega, a Bretanha francesa, o Alto Ádige entre outros sem esquecer a Escócia. Em alguns casos desapareceram (a Bretanha) noutros conseguiram o seu fito (Kossovo) em vários são uma ameaça recorrente (a Padânia, outra metrópole que se quer libertar das suas colónias que no auge da unificação italiana, conquistou e explorou desalmadamente e que enriqueceu. Também ela, com a a desapiedada exploração do proletariado emigrado do Sul ao mesmo que o desprezava. O caso da Flandres é relativamente diferente na medida em que foi vítima da Valónia francófona e só emergiu graças ao aumento da sua população eà renovação do seu aparelho industrial que ultrapassou há muito as envelhecidas estruturas do sul belga.
De todo o modo, na Europa que tant bien que mal tenta unir-se, falar a uma só voz, estas tentativas não são bem vistas. A Catalunha apela para uma parede de silêncio que não lhe pode responder por receio de ver o exemplo do irredentismo multiplicar-se. Não restam dúvidas que, se alguma vez se desvinculasse de Espanha, teria dramáticos problemas ao não conseguir integrar-se na UE nem no vasto grupo de países ibero-americanos de língua espanhola. De resto, e ao contrário da Galiza, nunca lá teve comunidades emigrantes (como é o caso da Argentina ou de Cuba onde até Fidel de Castro era descendente de galegos).
Em Portugal, onde o catalão é mais desconhecido que o árabe, o que não é dizer pouco, parece haver agora uma “Catalanofilia” seguramente fruto dos velhos e persistentes ressentimentos anti Castela. De facto, entre certa esquerda chique depois do perdido amor pela ETA recentemente falecida, apareceu esta simpatia extrema por outra região periférica. Mesmo se tudo desconhecem daquela região, desde a geografia às artes, da história à gastronomia.
Na França dos anos sessenta havia políticos que afirmavam que o seu amor à Alemanha era tal que não lhes bastavam duas mas antes preferiam três, quatro ou mais. Várias, guerras perdidas outras só ganhas graças a aliados poderosos, oportunamente esquecidos ou renegados, explicam este sentimento que a necessidade histórica e a UE fizeram retrair mas não desaparecer totalmente
4 A Espanha tem uma Constituição, uma lei fundamental que. se reconhece e ampara as autonomias regionais conferindo-lhes poderes que regiões de outros países invejam, também estabelece limites e deveres a estas e aos cidadãos.
Ao tomar a iniciativa de activar os prolegómenos da declaração de independência, os dirigentes catalães (e basta ler o que então diziam e proclamavam – oh que maçada por cá ninguém lê a imprensa espanhola e muito menos a catalã!...- ) sabiam perfeitamente ao que se expunham, sabiam que. embora num grau reduzido, exprimiam uma opinião minoritária na cidadania catalã, mas persistiram escudando a desobediência à lei fundamental e às leis do país no facto de estarem a fazer política. Quando o Supremo Tribunal depois de um processo que respeitou todas os procedimentos legais condenou alguns dirigentes a duras penas logo se levantou o escândalo. “Judicialização da política” parecendo, em boa verdade que seria preferível uma sentença desconforme com a factualidade e com a lei aplicável ou seja uma “politização da justiça”.
É verdade que há um problema político. É verdade que o independentismo é três ou quatro pontos menor do que a manutenção do status quo. Também é verdade que um sistema hábil e lesivo dos direitos dos cidadãos permite uma oportuna divisão territorial em que há sub-representação de votos em zonas onde habitam cidadãos recentemente chegados e sobre-representação em círculos mais afins das aspirações catalanistas.
Também é verdade que o Governo espanhol tratou com sobranceria alguns dirigentes catalães e se recusou a ouvir as boas ou as más razões destes. Diga-se, aliás que esse mesmo Governo está (e esteve sempre) acossado pela opinião pública espanhola, isto é por mais de 80% dos cidadãos, que não aceita a postura catalã.
Parafraseando um velho título dos tempos irrespiráveis: estamos de novo face ao “Labirinto espanhol” mesmo se já passaram muitos anos sobre esse notável livro de Gerald Brennan. Os abaixo-assinantes do último patético manifesto pró-catalão poderiam dedicar um par de horas à leitura desta obra fascinante. Preferem porém, a indignação fácil, o ressentimento lusitano e a demagogia. E fica bem o nome no jornal...
Tanto tempo perdido....
Em memória de Ricardo Salvat que me deu as primeiras lições de catalá;
recordando Luís Seoane, um galego a quem devo muita da literatura do seu país
E com imensa e antiga ternura para Maria del Coro, basca que me mostrou a Madrid que ela amava (tão jovens que eramos..)
* Na gravura: "Els 4 Gats" aqui se beberam muitas e boas cervejas com o Ferrand, a Pilar, o Eugeni, o Xavier, a Marguerita, o Pere, a Montse e outros amigos catalães com quem fiz um par de cursos de Direito Comparado. Que estejam bem e a gozar uma doce velhice