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Incursões

Instância de Retemperação.

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estes dias que passam 342

d'oliveira, 27.03.20

Diário das semanas da peste

Jornada décima segunda-feira

É preciso ter sorte com a família

mcr, 27 de Março

 

quando fui por uma fotografia de Coimbra que aí “postei” (a linguagem internet é horrenda e em boa verdade eu poderia ter escrito “publiquei” mesmo se isso pudesse causar confusão) deparei-me com umas cartas da avó Aldina, a “velha Senhora” que também já deu um ar da sua graça nestes folhetins com que vou entretendo o dia a dia.

Numa dessas cartas, escrita cerrada, miudinha para poupar no papel (E, até conseguia em certos casos, depois de escrever na horizontal, dar-se ao luxo de meter mais umas linhas na vertical, coisa que me fazia trocar os olhos e a paciência). li várias referências a familiares e especilmente aoseu avô materno, José. A avó escrevia uma boa dúzia de cartas por dia pois a família era grande. Só irmãos tinha seis, a mãe dela tinha ainda mais de várias fornadas pois o trisavô José Costa Alemão despachou duas ou três mulheres legítimas.

José Costa Alemão nasceu no Brasil, em Minas Gerais (não sei em que cidade) e quando chegou a altura veio para Coimbra cursar Medicina. Não acabou o curso pois, estando no último ano, zangou-se com o tio que era Reitor da Universidade e regressou a casa. Irrequieto, constituiu um grupo e foi desbravar os matos brasileiros e disso há uma vaga notícia que li num resumo histórico brasileiro. Quando, o Brasil se meteu numa das suas guerras fronteiriças, entenderam as autoridades mobilizar os portugueses que por lá mourejavam. A coisa indignou alguns que achavam nada ter a ver com a bandeira “auri-verde” (só mesmo os brasileiros usariam esta expressão!) e vai daí recusaram ir para a tropa. As autoridades replicaram com ordens de mobilização, ameaças de prisão e açularam a populaça contra os portugas. Em boa verdade, os portugueses emigrantes chegavam ao Brasil com uma mão à frente e outra atrás, fugindo da miséria,  atiravam-se ao trabalho e geralmente tinham sorte. Isso, e o facto de serem comerciantes, pequenos comerciantes, não os tornou especialmente benquistos entre o povão que tinha de ir à padaria, à mercearia ou ao talho do português. Obviamente, multiplicaram-se os incidentes e algumas centenas de portugueses, com o apoio do marquês de Sá da Bandeira, abandonaram tudo e vieram para o Sul de Angola em barcos fretados pelo governo de Portugal. Traziam mulheres, filhos, sobrinhos, escravos e uma desvairada vontade de prosperar. O trisavô fez parte de uma dessas expedições que Pedro Chaves, um seu cunhado chefiava. Aportaram a Moçâmedes e largaram para os sertões. O trisavô criou na Chibia uma grande fazenda que teve a honra da visita do general João de Almeida que muito a apreciou e louvou em “Sul de Angola, relatório de um governo de distrito (1908-1910), esboço fisiográfico da região, elementos etnográficos e históricos e dados diversos, acção militar e administrativa, progresso moral e material, economia e fomento” (Agencia Geral das Colónias 1936, 2ª edição). São mais de 600 páginas recheadas de mapas, fotografias, quadros estatísticos, um luxo. Elogia o trisavô que aparece com o nome de Alemão Coimbra. Na verdade, o velho senhor ficara marcado pela cidade onde estudara e adoptara o nome Coimbra. Do seu passado de estudante de medicina usou sempre os conhecimentos pelo que além de grande fazendeiro e pai de prole numerosa era conhecido como uma espécie de médico. E aventureiro, pois a ele se deve o reconhecimento total do curso do rio Bembe, como testemunha em “Vou lá visitar pastores” o Ruy Duarte de Carvalho. Quando o conheci, disse-lhe quem era e ele, generoso e gentil, respondeu-me o seu antepassado era um homem das Arábias. Explicou-me melhor o facto do trisavô ser “capitão de segunda linha”, ou seja podia, em casos excepcionais ser mobilizado e avançar com as suas tropas geralmente irregulares para as zonas onde faltassem as tropas de 1ª linha.

Todavia, não é dos feitos militares (se os houve) do trisavô que venho falar mas apenas da sua prole pois filhos não lhe faltaram. Dentre esses, uma fornada houve (da segunda  ou terceira e última mulher) em que a imaginação baptismal do trisavô atingiu altos cumes. Efectivamente, entendeu homenagear os nossos longínquos avós e deu nomes latinos aos três filhos (todos mais novos que a minha avó, filha da bisavó Hermínia, por sua vez filha do primeiro casamento). Assim nasceram e cresceram Horácio, Tito Lívio e Castorina. Conheci a tia Castorina na passagem por Luanda e o tio Tito Lívio em Lisboa.

É dele que vou falar. Tito Lívio Costa Alemão (Coimbra?) nascido provavelmente em 1900/1901, fez toda a sua vida em Angola como aliás todos os seus irmãos. Em jovem foi batedor do Exército português participando assim na ocupação de alguns territórios do interior leste, nomeadamente no Cuanhama. Algum mérito terá tido porquanto, já nos anos 70, o Governo português chamou-o a Lisboa para depor num relatório que nunca vi, nem conheço mas que lhe permitiu estar por cá quase meio ano. Era um velho encantador, de fala fácil como se comprova pela primeira (e por mim testemunhada) conversa com a sobrinha, minha avó. “ai Lili que bem que estás! E bonita!”, A avó do alto dos seus setenta e poucos anos corou como uma debutante, “Tio Tito Lívio sempre adulador”- Resposta: “que não Lili, nada disso. Bem me lembro de ti, eras um pêssego!” (e para mim e para a João minha mulher: “sim um pêssego, um pastel de nata!”) E depois, como calculam foi um rosário de recordações e notícias da imensa parentela que por Angola vivia.

A segunda vez com o tio Tito Lívio foi deveras difícil pois o homem furtava-se ao nosso contacto e saira abruptamente da pensão onde se hospedara. qundo finalmente o Tio Quim e eu o caçámos, eleligeiramente envergonhado confessou que uma empregada o acusara de sedução e de ser presuntivo pai de uma critura a nascer. Não negava o "contacto carnal" (sic) mas entendia que com aquela idade, já não era homem para fazer mais filhos. "Olha que se fosse" andaria carregado de titosliviosinhos"!!!

Foi, durante das longas conversas com a avó e sobrinha que me fui apercebendo da figura do trisavô (o “avozinho”, como dizia a avó) que fizera fortuna e se arruinara por culpa de um filho que foi mau gestor das propriedades familiares. Nos seus melhores tempos, provavelmente antes do nascimento da avó, na casa grande havia mesa posta para dezenas de pessoas, familiares ou passantes. Foi assim que, em certa altura apareceu um grupo de boers fugido dos ingleses. O trisavô recebeu-os fidalgamente, alojou-os e perguntou se havia no grupo rapazes solteiros pois tinha, Tito Lívio dixit, "umas familiares solteiras para desencalhar." E assim, a tia Hirondina, irmã do trisavô casou com van der Keller (ou Koeller?) que lhe chamava Hirrondina, carregando nos rr e enchendo-a de filhos.

Por onde andarão esses afastadíssimos parentes? O tio Tito Lívio desapareceu nos idos de 74/75 desconhecendo-se se conseguiu chegar à Namíbia, se morreu de morte natural ou morte macaca, dos seus filhos apenas há a vaga notícia que terão retirado para a Namíbia e daí para sei lá que sítio. Portugal era, para eles algo de absolutamente estranho e estrangeiro. A tia Castorina, tarde o soube, morreu aqui no Porto para onde veio com uma das filhas. Quando fui por elas já não estavam na cidade. Os irmãos da avó todos mais novos do que ela, chegaram sãos e salvos, depois de mil aventuras. Só conheci um deles, o tio Pedro que viera muito antes, logo que se reformou. Um dos filhos, o primo Roberto escreveu vários livros de que ando à procura sob o título geral “Angola dados e factos”. (Pago o que for preciso desde que razoável). René Pellissier, um excelente especialista em história das colónias portuguesas e muito editado por cá (Estampa) elogiou-lhe a probidade e o trabalho miudinho de levantamento histórico feito por um autodidata. O Roberto ia morrendo sufocado pelo orgulho e pelo reconhecimento. Perdi-lhe completamente a pista se é que não morreu pois era dez ou vinte anos mais velho do que eu que, como saberão, já não sou - e de há muito - uma novidade.

Convém lembrar que umas boas centenas de páginas de carácter histórico e muito factuais foram escritas cá, longe dos arquivos de Namibe (Moçâmedes), Chibia, Lubango (Sá da Bandeira)! Boa malha, primo Roberto!

E para terminar mais outra jornada, eis uma história de um parente longínquo que partilhou com o trisavô a aventura da vinda do Brasil para o Sul de Angola. Era homem culto, com apreciáveis dotes de comando e tinha as suas entradas no Paço. Depois de se estabelecer em Sá da Bandeira, casado e com filhos, viu uma senhora igualmente casada, pelos vistos muito bonita e com uns olhos que todos admiravam. Paixão tremenda, abandono das respectivas famílias, fuga para a metrópole onde se instalaram. A esposa abandonada lançou-lhe uma praga: “aqueles olhos e perdição que me perderam o marido haviam de cegar”.

Pois não é que alguns meses depois, um ano talvez, a bela destruidora do lar da ressentida senhora cegou?

Meu Deus que família!

Leitores, cuidem-se! E amparem as velharias familiares que tiverem. E saquem-lhes a história dos mais antigos (em África: dos mais velhos). Verão que a aventura dessas quase desaparecidas figuras já só em fotografia, merece um pausa, um enternecimento, um sorriso.